sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A VERSÃO DO CIVISMO

José Sócrates está perto de nova maioria absoluta leio, na prospectiva de um politólogo. É bem capaz de ser verdade. O que, para mim, tanto se me fez como se me faz. Há muito que se perdeu a noção de magistério. E todo aquele que denuncia esta grave amolgadela no tecido cultural português corre perigos vários.

O prof. dr. José Gil, num admirável artigo editado na Visão, revista que raríssima vez frequento, fala acerca do processo de domesticação da sociedade, por parte deste Governo. E diz: Como foi possível passar da contestação à obediência, da revolta à ‘servidão voluntária’, como lhe chamava La Boétie? Indiquemos um só mecanismo que o Governo utiliza: a ausência total de resposta a todo o tipo de protesto. Cem mil pessoas na rua? Que se manifestem, têm todo o direito – quanto a nós continuaremos a enviar-lhes directivas, portarias, regulamentos a cumprir, sob pena de … (existe a lei). Ausentando-se da contenda, tornando-se ausente, o poder torna a realidade ausente e pendura o adversário num limbo irreal.

É uma leitura devastadora da sociedade portuguesa. E a ameaça de nova maioria absoluta é muito presumível, e deve-se, substancialmente, à inexistência de alternativa. A dr.ª Manuela Ferreira Leite não possui compleição para exercer as funções de um terço do eleitorado do PSD lhe conferiu. Quando, nestas mesmas colunas, escrevi, há meses, o que dizem, agora, muitos barões do PSD, caiu o Carmo e a Trindade!

Luís Filipe Menezes, tão vilipendiado, torna público o que a maioria dos militantes sociais-democratas e numerosos outros portugueses têm reconhecido: a senhora reduziu-se ao silêncio porque, na verdade, nada tem a dizer. E o lento afundamento do PSD, como partido de poder, começa a ser preocupante. Há dias, numa inesperada aparição, ela rasgou, levemente, a cortina do mutismo, e ofereceu-se para colaborar com o Governo na solução da crise. Ficou tudo siderado. Porque o Governo (mal ou bem) já havia tomado decisões práticas. E porque, na assunção do seu papel de líder da oposição, deveria, isso sim, apresentar a sua solução, a sua proposta, o projecto de solução do PSD.

Não é, apenas, a crise geral que favorece o cimento no qual se baseia José Sócrates. Com ligeiro atraso, enfrentou a crise. Mais: promoveu aumentos aqui e ali, tranquilizou o desassossego nacional, lançou umas lentilhas, desguarneceu as críticas. Ele sabe muito bem utilizar as técnicas de marquetingue, a máscara austera da convicção, o discurso com ecolalia, repetitivo e, pelos vistos, extremamente eficaz. Por enquanto está tudo sob controlo, afirma ele e os outros eles que o compõem. Perante o que se vê em redor, o pessoal acredita.

Entretanto a dr.ª Ferreira Leite, quando se não envolve no manto do silêncio, embrulha-se em desastrosas contradições. A última das quais é a escolha de Santana Lopes para candidato ao Município de Lisboa. Não haveria outro, no PSD? Por exemplo: o engraçadíssimo dr. Morais Sarmento, ledo e brejeiro no falar de coisas sem nada dizer, como ficou testemunhado numa hilariante entrevista à revista Pública, salvo seja! Ou o dr. Pacheco Pereira, grande educador da alta burguesia; ou o dr. Arnaut, admirável figura de intelectual pós-moderno. Qualquer destas invulgares personagens faria a diferença – e a perplexidade. Rezam surdas confissões que a dr.ª Manuela Ferreira Leite nomeou o dr. Santana porque "ele é muito visível" e dispõe de muito carisma. Quer-se dizer: é um populista, categoria política que a chefe do PSD execrava, ainda há escassas semanas.

Devo dizer aos meus Dilectos que tanto se me faz o dr. Costa como o dr. Santana. E as razões nas quais se baseia a minha decisão são as mesmas, aplicáveis, por igual, a um e a outro. A obediência como servidão, de que fala o prof. dr. José Gil, foi em mim substituída pela indiferença raivosa. Será uma forma de protesto moral, de posição recalcitrante contra formas de governação que estão a ser rudemente sovadas em todo o mundo.

Porque o que está a acontecer no mundo prova o erro tamanho de uma ideologia laminar, fruto da obediência servil dos partidos de Direita e de Esquerda pouco inclinados a contrariar a tese da ganância e do desenfreado lucro pelo lucro que marcou as leis do mercado. Fala-se, agora, da resgulação, porque o mercado é muito bom: os seus executantes é que se desviaram do são caminho. Lembra a defesa do estalinismo, feita por áulicos, que atribuía aos desvios a degradação do sistema. Se há múltiplas razões para se criticar as estruturas do comunismo, muitas mais há para se analisar os meios e os fins da globalização – não já como uma estratégia económica perigosíssima, como um desígnio político totalitário.

Será demasiado pedir aos protagonistas mais directamente em causa, o PS e o PSD, um esforço teórico, uma explanação didáctica e pedagógica da situação do mundo e das coisas?

O problema é que a falta de preparação dos nossos políticos, a abdicação dos nossos intelectuais, a displicência demencial dos nossos jornalistas e o torpor dos nossos comentadores – levam-nos não só ao desgosto da palavra como à aversão a tudo. Até ao civismo.


B.B.

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