BRANCO INCANDESCENTE
Havia os dias em que eu acordava com as vozes das mulheres
na tapada. Começavam a trabalhar bastante cedo porque o calor era por demais. A
partir de meio da manhã, já custava aguentá-lo; a partir da tarde, já ninguém
podia com ele. As mulheres eram a minha mãe, a minha avó e, talvez, alguma
vizinha a quem a minha mãe tivesse pedido para ajudar. A essa hora, a luz do
sol já se espalhava por tudo: pelos torrões de terra, grossos, secos, pelas
folhas finas das oliveiras ou pelo toque dos sinos na torre da igreja, a marcar
as horas com pancadas solenes. As vozes das mulheres, feitas de manhã,
misturavam-se com tudo isto.
Quando eu chegava ao quintal e me inclinava sobre o muro da
tapada, via-as a caiarem as traseiras da nossa casa. Usavam lenços na cabeça
que as tapavam até ao pescoço e, sobre eles, chapéus de palha. Por cima da
roupa, usavam batas; por baixo das saias, usavam calças. Molhavam os pincéis
grossos na cal e raspavam-nos ruidosamente nas paredes. Para chegarem às partes
mais altas, os rebordos dos beirais, prendiam pincéis na ponta de canas com
vários metros de altura. Eu admirava-me com esse trabalho. A cal escorria pela
parede, aguada e branca. A parede cheirava a cal, a pedra fresca. As mulheres
estavam sempre bem-dispostas. Nessas manhãs, pareciam-me mais novas.
Na minha rua, havia paredes de casas que tinham tantas
camadas de cal sobrepostas, ano após ano, que tinham perdido a origem da sua
forma. Eram casas brancas, de superfície ondulada, com as esquinas
arredondadas. Eu sabia que as suas paredes eram grossas e que, mesmo debaixo da
maior força do calor, eram frescas. Por fora, com as portas apenas no trinco,
não era preciso fechá-las à chave, pareciam grutas brancas, fortes e limpas.
Mesmo quando as viúvas morriam e não havia ninguém para caiar essas casas
durante anos, as paredes mantinham o asseio. Então, eu e as crianças da minha
idade, arrancávamos lascas de cal com as unhas e, às escondidas, gostávamos de
comer as mais fininhas.
Havia também os dias em que eu acordava mais cedo e assistia
à maneira como as mulheres tiravam grandes pedras de cal de uma saca e as
deixavam cair num bidão meio cheio de água. As pedras de cal faziam a água
ferver. Era esse o fenómeno, parecido com um milagre, a que eu queria assistir.
Depois, seguravam um pau com as duas mãos e mexiam essa água grossa, branca,
que rebentava bolhas lentas, acompanhadas por barulhos líquidos, como um animal
cansado.
Nesses dias, almoçávamos ensopado de borrego no quintal, à
sombra dos pessegueiros. As mulheres falavam de qualquer assunto que as fazia
sorrir, as suas vozes misturavam-se com o tempo. Eu ouvia-as, prestava atenção
a cada frase, aquilo que diziam dissolvia-se em claridade, mas também reparava
nas gotinhas de cal que lhes tinham secado na pele do rosto, a pouca distância
dos olhos. Cal sobre a pele. Havia nitidez nas cores, a luz era toda verdadeira
e, como o sol reflectido na cal, as mulheres encandeavam.
José Luís Peixoto(texto)
Sharking (foto)
Etiquetas: Alentejo, Galveias, José Luís Peixoto
6 Comments:
Grande texto ó Pacheco.
Um muito obrigado!
Este blog perdeu a raça, a diferença do ecos do prior que, neste momento até lhe leva vantagem, pelo menos lá, podemos ser informados do falecimento de alguns conterrâneos. Em tempos foi um espaço de informação. Neste momento, é um espaço de publicidade das obras do Peixoto.
Quem é este Peixoto ?.
É um tipo muita feio cheio de tatuagens, que fala duma maneira estranha e escreve não sei como.
Parabéns.
Abraço muito amigo.
Começo a ler o texto e já sei que és tu a brindares a terra onde nascestes, com uma frescura e claridade única.
Mas ter-te conhecido como aquele menino de caracóis, sempre concentrado em algo que desconhecia, mas em que já advinhava ser especial,dá-me a humildade de tratar com todo o cuidado e atenção os alunos com que me cruzo, temendo quebrar-lhes as asas, estimulando-os como sou capaz para o prazer do saber.
Parabéns
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