segunda-feira, 7 de maio de 2012

BRANCO INCANDESCENTE


Havia os dias em que eu acordava com as vozes das mulheres na tapada. Começavam a trabalhar bastante cedo porque o calor era por demais. A partir de meio da manhã, já custava aguentá-lo; a partir da tarde, já ninguém podia com ele. As mulheres eram a minha mãe, a minha avó e, talvez, alguma vizinha a quem a minha mãe tivesse pedido para ajudar. A essa hora, a luz do sol já se espalhava por tudo: pelos torrões de terra, grossos, secos, pelas folhas finas das oliveiras ou pelo toque dos sinos na torre da igreja, a marcar as horas com pancadas solenes. As vozes das mulheres, feitas de manhã, misturavam-se com tudo isto.

Quando eu chegava ao quintal e me inclinava sobre o muro da tapada, via-as a caiarem as traseiras da nossa casa. Usavam lenços na cabeça que as tapavam até ao pescoço e, sobre eles, chapéus de palha. Por cima da roupa, usavam batas; por baixo das saias, usavam calças. Molhavam os pincéis grossos na cal e raspavam-nos ruidosamente nas paredes. Para chegarem às partes mais altas, os rebordos dos beirais, prendiam pincéis na ponta de canas com vários metros de altura. Eu admirava-me com esse trabalho. A cal escorria pela parede, aguada e branca. A parede cheirava a cal, a pedra fresca. As mulheres estavam sempre bem-dispostas. Nessas manhãs, pareciam-me mais novas.

Na minha rua, havia paredes de casas que tinham tantas camadas de cal sobrepostas, ano após ano, que tinham perdido a origem da sua forma. Eram casas brancas, de superfície ondulada, com as esquinas arredondadas. Eu sabia que as suas paredes eram grossas e que, mesmo debaixo da maior força do calor, eram frescas. Por fora, com as portas apenas no trinco, não era preciso fechá-las à chave, pareciam grutas brancas, fortes e limpas. Mesmo quando as viúvas morriam e não havia ninguém para caiar essas casas durante anos, as paredes mantinham o asseio. Então, eu e as crianças da minha idade, arrancávamos lascas de cal com as unhas e, às escondidas, gostávamos de comer as mais fininhas.

Havia também os dias em que eu acordava mais cedo e assistia à maneira como as mulheres tiravam grandes pedras de cal de uma saca e as deixavam cair num bidão meio cheio de água. As pedras de cal faziam a água ferver. Era esse o fenómeno, parecido com um milagre, a que eu queria assistir. Depois, seguravam um pau com as duas mãos e mexiam essa água grossa, branca, que rebentava bolhas lentas, acompanhadas por barulhos líquidos, como um animal cansado.

Nesses dias, almoçávamos ensopado de borrego no quintal, à sombra dos pessegueiros. As mulheres falavam de qualquer assunto que as fazia sorrir, as suas vozes misturavam-se com o tempo. Eu ouvia-as, prestava atenção a cada frase, aquilo que diziam dissolvia-se em claridade, mas também reparava nas gotinhas de cal que lhes tinham secado na pele do rosto, a pouca distância dos olhos. Cal sobre a pele. Havia nitidez nas cores, a luz era toda verdadeira e, como o sol reflectido na cal, as mulheres encandeavam

José Luís Peixoto(texto)
Sharking (foto)

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6 Comments:

At 7 de maio de 2012 às 20:43, Anonymous Alberto said...

Grande texto ó Pacheco.
Um muito obrigado!

 
At 8 de maio de 2012 às 16:08, Anonymous Anónimo said...

Este blog perdeu a raça, a diferença do ecos do prior que, neste momento até lhe leva vantagem, pelo menos lá, podemos ser informados do falecimento de alguns conterrâneos. Em tempos foi um espaço de informação. Neste momento, é um espaço de publicidade das obras do Peixoto.

 
At 9 de maio de 2012 às 00:01, Anonymous Anónimo said...

Quem é este Peixoto ?.

 
At 9 de maio de 2012 às 08:13, Anonymous Anónimo said...

É um tipo muita feio cheio de tatuagens, que fala duma maneira estranha e escreve não sei como.

 
At 9 de maio de 2012 às 18:56, Anonymous Mª. Antónia said...

Parabéns.
Abraço muito amigo.

 
At 19 de maio de 2012 às 17:22, Anonymous Anónimo said...

Começo a ler o texto e já sei que és tu a brindares a terra onde nascestes, com uma frescura e claridade única.

Mas ter-te conhecido como aquele menino de caracóis, sempre concentrado em algo que desconhecia, mas em que já advinhava ser especial,dá-me a humildade de tratar com todo o cuidado e atenção os alunos com que me cruzo, temendo quebrar-lhes as asas, estimulando-os como sou capaz para o prazer do saber.
Parabéns

 

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