sábado, 10 de fevereiro de 2007

ABORTO, MENTIRAS E VÍDEO

Domingo, vou responder à única coisa que me é perguntada: se acho que a justiça deva continuar a perseguir criminalmente quem faz aborto até às dez semanas de gravidez. Já me perguntaram isto em 98, já vi a mesma pergunta feita muito antes e em muitos outros lugares e a minha resposta continua igual à que dei a mim mesmo, a primeira vez que pensei no assunto: não, não acho que essas pessoas devam ser tratadas como criminosas. Verifico que há quem, entretanto, tenha mudado de opinião, num sentido ou no outro. Respeito essa mudança, só me custa a compreender é que se possa passar directamente de militante de um dos lados para militante do outro, como fez Zita Seabra. Há uma diferença entre virada e cambalhota.

Na mesma Faculdade onde ensina Marcelo Rebelo de Sousa, ensinaram-me dois princípios fundamentais em matéria criminal: um, que só pode ser considerado crime aquilo que a consciência social colectiva reconhece como tal; e, dois, que não há crime sem pena. Do primeiro princípio, resulta que um Código Penal não pode ser cativado por uma maioria, circunstancial ou não, que, sem um largo e pacífico consenso, define em cada momento o que é e não é crime. Conheço algumas mulheres e homens que, em dado momento das suas vidas, recorreram ao aborto. Foi uma decisão pessoal e íntima deles, que não me ocorreria julgar a não ser para dizer convictamente que não reconheço nenhum deles como criminoso. Não reconheço eu nem reconhece seguramente a maior parte das pessoas, incluindo muitos que vão votar ‘não’ à despenalização. Se assim é, porque insistem então em que a lei continue a tratar tais pessoas como criminosas?

Obviamente que a despenalização significa descriminalização. Os apoiantes do ‘sim’ têm medo da palavra e têm ainda mais medo da expressão que Aguiar Branco insiste em utilizar: aborto livre. Mas é exactamente disso que se trata: despenalizar significa descriminalizar e descriminalizar significa que o aborto passa a ser livre nas condições previstas na lei. Não percebo esta hipocrisia do campo do ‘sim’: o que se discute é precisamente isso, se há crime ou não há crime.

Mas, se há crime, há pena - como qualquer jurista não-malabarista sabe. Por isso é que se chama a este ramo do direito Direito Penal. A hipocrisia dos defensores do ‘não’ consiste na versão piedosa e absurda de que se poderia inventar para este ‘crime’ um tratamento especial: continuaria a ser crime, mas sem pena. Ou então, e ainda mais absurdo, haveria crime, processo, inquirições, mas o julgamento, esse, ficaria suspenso. Como se não percebessem o essencial: que o essencial é a humilhação. Marcelo Rebelo de Sousa produziu, a propósito, um fantástico número de contorcionismo jurídico para tentar justificar o injustificável. Teve azar: o ‘Gato Fedorento’ pegou nos seus argumentos e no seu tão publicitado vídeo no ‘You Tube’ e desfê-los à gargalhada, num dos mais inesquecíveis momentos de humor e sátira política de que me lembro.

Era preciso mudar de argumentação e, a meio caminho, os do ‘não’ passaram a defender que houvesse pena, mas não de prisão, para não impressionar as pessoas. Que pena, então? A melhor sugestão veio de Bagão Félix: trabalho comunitário, ou seja, trabalho forçado. Estão a imaginar uma mulher condenada por aborto a ter de se apresentar no trabalho que lhe tivesse sido destinado e a ter de explicar porque estava ali? Porque não antes a pena de exibição em local público?

Em 1998, a profunda estupidez e arrogância intelectual da campanha do ‘sim’ levou-me a votar em branco. Porque não voto apenas em ideias e projectos políticos, mas também nos métodos e protagonistas. Felizmente, desta vez, o ‘sim’ não repetiu nem as asneiras nem os piores protagonistas. Desapareceram as celebridades a gabarem-se de serem sim ou de já terem abortado, desapareceram as “especialistas de género” e as feministas a gritarem pelo “direito da mulher ao próprio corpo”. O ‘sim’, desta vez, deixou a presunção e o mau gosto para o campo do ‘não’ e isso foi um inestimável gesto de despoluição cívica.

Do lado oposto, como era de temer, saiu todo o arsenal de demagogia, mentiras e contradições disponíveis. Começou com o argumento financeiro, esgrimido por António Borges, verdadeiramente chocante do ponto de vista político, humano e até cristão. Continuou com a hipocrisia de defender a actual lei, depois de tudo terem feito para que ela não fosse aplicada, e acabou, claro, com o argumento da vida humana do feto, que se estaria a matar.

A questão da vida ou não vida do feto até às dez semanas, como se percebeu escutando os argumentos de ambos os lados, é muito mais filosófica e religiosa do que científica. Mas há duas questões conexas que eu gostaria de ter visto discutidas e não foram. A primeira é que com tanta veemência no “direito à vida” de um feto que se transformará num filho não desejado, não ocorra pensar no direito oposto: o direito de uma criança não vir ao mundo quando aquilo que a espera é uma vida indigna e miserável. 2006 foi, entre nós, um elucidativo exemplo de casos desses: filhos abusados sexualmente pelos pais ou padrastos à vista das mães, assassinados e escondidos em parte incerta ou mortos à pancada, sem que as instituições do Estado, a sociedade civil e os piedosos militantes do ‘não’ absoluto tenham demonstrado ter a solução que nos convença que não teria sido melhor nem sequer terem chegado a nascer. Não tenho dúvidas de que existem anualmente uns milhares de abortos que não deveriam ter sido feitos. Mas existem também, infelizmente, muito mais pais que nunca o deveriam ter sido.

A outra questão conexa que eu gostaria de ter visto explicada pelos defensores do ‘não’ é a da sua atitude perante o suposto crime, que a mim me parece totalmente hipócrita. Se eles acreditam verdadeiramente que um feto até às dez semanas é um ser humano que, pelo aborto, estará a ser morto, por que é que, em lugar de proporem penas suavíssimas ou até a isenção de pena para este ‘crime’, não propõem antes, e com toda a lógica, o seu agravamento? Como se chama o crime que consiste em tirar voluntariamente a vida a um ser humano? Homicídio, não é?

Sem dúvida que Portugal precisa de muito mais crianças, de maior taxa de natalidade. Mas isso não se consegue forçando o nascimento de crianças não desejadas, mas sim com crianças desejadas e condições para as desejar. Entretanto, temos outro problema para resolver que é o de saber como deveremos tratar as cerca de 40.000 mulheres que se estima que fazem abortos todos os anos. Temos a alternativa de continuar a deixá-las entregues a si próprias e, conforme o dinheiro que têm, optarem entre Badajoz ou a abortadeira de bairro. E temos a alternativa do Serviço Nacional de Saúde, com vigilância médica e acompanhamento psicológico. Eu defendo a segunda, da mesma forma que há muitos anos defendo que o Estado devia vender droga nos centros de saúde, sob vigilância médica e acompanhamento terapêutico e psicológico. Porque me impressiona uma sociedade que satisfaz a sua consciência chutando simplesmente os problemas para a clandestinidade e o Código Penal.


Miguel Sousa Tavares

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3 Comments:

At 10 de fevereiro de 2007 às 15:09, Anonymous Anónimo said...

O "NÃO" E OS CATÓLICOS

Como já foi notado, o referendo sobre o aborto, apesar de um papel discreto da Igreja, revelou um certo ressurgimento do catolicismo ou, mais precisamente, o ressurgimento de um certo catolicismo. Não do catolicismo popular, que sempre existiu (97,6 por cento dos portugueses garantem que são católicos), mas do catolicismo da classe média. Não custa compreender porquê. O fracasso do "socialismo real" - e, com ele, das várias variantes do marxismo universitário e político - deixou um vácuo. A social-democracia, como praticada à esquerda e à direita na "Europa" inteira, não inspira filosoficamente ninguém. E a relativa ausência da Igreja da vida pública e da vida oficial fez morrer os restos do anticlericalismo jacobino e maçónico, que ainda sobravam da I República e da oposição a Salazar. Quem anda à procura de um sentido para o mundo obscuro e cada vez mais mutável que é nosso (e há muita gente que anda) ficou assim com a Igreja ou perto da Igreja.

Essa aproximação é, no entanto, ambígua. O "novos" católicos não aceitam a ortodoxia e o magistério na parte, ou partes, que frontalmente colidem com o seu interesse ou a ideologia dominante. Poucos condenam o sexo pré-marital, o divórcio, a união de facto ou a contracepção. Um número considerável não condena (ou finge que não condena) a homossexualidade. E a maioria só rejeita o casamento de homossexuais (que, de resto, não provoca um grande furor), a adopção de crianças por homossexuais (que até hoje não se discutiu a sério em Portugal) e, claro, o aborto. O "novo" católico ou a "nova" católica é um ser, para usar o calão em curso, "compartimentalizado". O que significa que é ou não é católico conforme o caso, a oportunidade e a circunstância e que se não sente por isso menos católico.

A necessidade, ou a vontade, de se adaptar a uma civilização hostil (uma "civilização de morte", hedonista e materialista - Ratzinger dixit) produziu esta espécie estranha, que por aí prolifera fora e frequentemente contra a disciplina da Igreja. Verdade que nunca a Igreja conseguiu impor a sua regra ao conjunto dos fiéis. Mas verdade também que a Igreja não é uma organização liberal ou democrática e que não existe sem obediência. A campanha do "não", no seu entusiasmo, no seu zelo e mesmo no seu excesso, mostrou, de facto, a força do sentimento católico em Portugal. Talvez porque a questão do aborto não separa os católicos da Igreja.

Vasco Pulido Valente
In: Público

 
At 10 de fevereiro de 2007 às 16:02, Anonymous Anónimo said...

Desde que me conheço que a questão da maternidade foi objecto de debate público apenas duas vezes, pelo pior dos motivos e da pior forma.

Em Portugal a maternidade é uma maçada, uma perturbação para os serviços, uma importante causa de absentismo, um incómodo para os empresários e meia dúzia de parágrafos politicamente correctos no Diário da República.

As aldeias despovoam-se, as escolas fecham nos meios rurais, os infantários escasseiam, o negócio dos infantários e escolas privadas floresce, a população envelhece e o país continua impávido e sereno, sem políticas de longo prazo, sem visão de futuro. E numa semana em que todos afirmaram ser contra o aborto, quase todos contra a sua penalização e no próximo domingo saberemos quantos serão contra a criminalização, ficámos com a sensação de que o rejuvenescimento dos portugueses passaria por não haver abortos, houve mesmo que concluísse que a sua proibição contribuiria para esse objectivo.

É evidente que o problema não se resolve com natalidade forçada, senão daqui a uns anos a conversa entre os jovens seria sobre qual o acidente que os tinha trazido ao mundo, uns diriam que nasceram porque os papás seguiam os valores da Santa Madre Igreja e a ovulação veio três dias antes do previsto, outros agradeceriam a vida ao farmacêutico que se tinha esquecido de reabastecer a máquina de venda de preservativos, haveriam os filhos dos shots e ainda os que agradeceriam à mãe as faltas às aulas de educação sexual.

Uma população saudável pressupõe uma distribuição estatística equilibrada mas também as condições para que a infância e a juventude sejam felizes, as escolas tenham qualidade e os poderes públicos apostem nos jovens em vez de descarregar nas suas costas todas as desgraças do país. Em Portugal nasce-se já com uma pesada vida pública, com o estatuto de cidadão de segunda condenado a pagar os desvaneios e corrupções do passado, sem grandes perspectivas de futuro e para viver em casas onde não se cabe e em escolas onde o prazer de ensinar quase não existe.

Se o “não” voltar a ganhar teremos mais uma década que em vez de discutirmos a maternidade problematizamos o código penal.

Se ganhar o “sim” corre-se o risco de dar o problema por resolvido.

Defendo uma maternidade como opção de liberdade, mas para que essa liberdade exista é necessário que os portugueses tenham condições para terem um filho quando o desejarem e para isso não basta que hajam uns catequistas simpáticos que de vez em quando troquem as discotecas por uma noite de trabalho voluntários em que distribuirão meia dúzia de fraldas e que outros fiquem tranquilos porque nenhuma mulher será humilhada em público.

Que o fim do debate do aborto dê lugar à discussão das dificuldades que é ser pai ou mãe em Portugal e do que espera os futuros portugueses, nasçam por acidente, por determinção divina ou desejo dos pais.

 
At 11 de fevereiro de 2007 às 16:11, Anonymous Anónimo said...

É ESPANTOSO:

Nunca um coxo treinou atletas para a maratona, nem um mudo deu aulas de dicção.

- Só os padres é que não prescindem de dar conselhos sobre a reprodução e a sexualidade!

- Há coisas fantásticas, não há?
- Dá que pensar!

 

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