sexta-feira, 9 de fevereiro de 2007

DIA 11 DE FEVEREIRO, VOTA


No próximo domingo somos chamados pela segunda vez a votar uma alteração à lei penal portuguesa. Responderei convictamente que sim à pergunta que é colocada, uma vez que penso ser esta a única via de começar a erradicar de uma vez por todas o problema do aborto clandestino e a tratar com dignidade e com respeito pela sua saúde as mulheres que se vêem perante a necessidade de interromper uma gravidez indesejada. De facto, aquilo que mais se tem tornado evidente desde a realização do último referendo sobre esta matéria é que estamos perante uma lei que se mostra triplamente inadequada.

Em primeiro lugar, é uma lei inadequada porque se mostra ineficaz para alcançar o objectivo de política criminal que se propõe, que é o de reprimir o aborto clandestino. A estimativa de cerca de 18 mil interrupções da gravidez em Portugal na clandestinidade vem demonstrar que não é este o caminho para eliminar o aborto clandestino e para tornar o recurso ao aborto uma realidade rara. Em segundo lugar, é uma lei inadequada porque estigmatiza, persegue e condena as mulheres que se deparam com uma situação de necessidade, em que não lhes é exigível levar até ao termo uma gravidez que não foi desejada. A solução que oferece é desproporcionada, uma vez que apesar da falta de objectivos claros e de eficácia da sua aplicação, continua a condenar as mulheres à clandestinidade, às insegurança para a sua saúde e, nalguns casos, ao contacto com a polícia e os tribunais.Finalmente, e como o debate na sociedade portuguesa tem demonstrado, com defensores do sim e do não a reafirmarem que não pretendem ver mulheres na prisão e tratadas como criminosas, é inadequada porque não traduz o consenso social que deve ser inerente à lei penal. A pena é a última solução do Estado, deve pautar-se por critérios de estrita necessidade e deve assentar numa consciência social de que determinada conduta deve ser punida. Não é essa, como podemos constatar, a realidade que encontramos na sociedade portuguesa actual.

Daí que eu entenda que a actual lei não pode continuar a fazer parte da resposta que a sociedade portuguesa dá à realidade do aborto. Se o que queremos é acabar com a criminalização das mulheres e salvaguardar a sua saúde, só o SIM no dia 11 de Fevereiro se afigura como a solução adequada e compreensiva. Apesar de recentemente termos vindo assistir a uma linha de argumentação de alguns apoiantes do não que sustenta a existência de alternativas à solução que é proposta, estamos, na realidade, perante meras miragens de uma solução cabal e eficaz. Segundo os defensores destas vias alternativas, não seria necessário prever a despenalização para a prática da interrupção da gravidez até às 10 semanas, uma vez que se poderia recorrer a outros mecanismos processuais, como a suspensão do processo penal, evitando a condenação e a pena de prisão. Contudo, não só não estamos perante verdadeiras soluções para o problema de saúde pública que é colocado pelo aborto clandestino, como se mantém a estigmatização e devassa da intimidade e vida privada das mulheres que abortaram.

Em primeiro lugar, porque a aparente solução não evita a investigação, não elimina o inquérito e não evita a decisão de um juiz sobre a suspensão do processo. A figura da suspensão provisória do processo, tal qual é conhecida do Código de Processo Penal em vigor, continua a pressupor o contacto com o aparelho da justiça, com o mundo da polícia e dos tribunais. A mulher continua, portanto, a ser tratada como uma criminosa, a lei continua a olhar a sua conduta como um crime.

Em segundo lugar, porque eventuais soluções inovadoras e originais, que mantêm um crime sem pena, contra toda a lógica do Direito Penal da era moderna e contra a própria natureza da função preventiva do direito penal, são, no mínimo, insanavelmente contraditórias. Se o que se afirma é querer manter um sinal no Código Penal de que determinada conduta é reprovada e depois não se associa qualquer consequência a essa reprovação, verdadeiramente estamos a utilizar a lei para emitir juízos morais e não para alcançar efeitos jurídicos.

Finalmente, porque a aparente solução não permite combater o aborto clandestino. Pode dar algum conforto àqueles que teimam em manter na lei penal a punição, ainda que sem intenção de a aplicar, mas esse conforto de algumas consciências tem um preço, e esse preço é o flagelo do aborto clandestino, sem condições de segurança, sem acompanhamento médico, sem fornecimento de informação e sem possibilidade de planear a próxima gravidez e de reintegrar as mulheres e os seus companheiros nos sistemas de planeamento familiar. O problema de saúde pública resolve-se trazendo para os estabelecimentos de saúde legais o que está no vão de escada, trazendo para os hospitais o que está nas esquadras e nos tribunais. Só assim será possível analisar a complexa realidade da interrupção voluntária da gravidez, conhecendo as suas causas, os seus efeitos e procurando adequar as políticas públicas e as redes de apoio social ao problema.

É pois necessário reafirmar o que está em causa no dia 11 de Fevereiro: alterar a lei penal portuguesa, no sentido de despenalizar a interrupção da gravidez em determinadas e limitadas circunstâncias. Não pode haver dúvidas nem mistificações quanto a este facto. Estamos a decidir se queremos continuar a considerar um crime a prática da interrupção voluntária da gravidez, realizada por opção da mulher em estabelecimento de saúde legalmente autorizado, até às 10 primeiras semanas.

A pergunta colocada é clara. Caso o sim seja maioritário no próximo dia 11 de Fevereiro, caberá à Assembleia da República acrescentar ao artigo 142.º do Código Penal uma nova causa de exclusão da ilicitude, ou seja, uma excepção à punição do crime de aborto, para as mulheres que interrompam uma gravidez nos termos apresentados na pergunta. Não podemos aceitar que esta realidade que é clara seja distorcida ou manipulada por quem pretende lançar a confusão e a incerteza. Uma resposta afirmativa à pergunta do próximo domingo não vai liberalizar o aborto, vai sim determinar qual o novo quadro de situações em que a sua prática não será punida com pena de prisão. Desde logo, vai exigir-se que a intervenção se faça em estabelecimento de saúde autorizado, com intervenção de pessoal médico, com cabal esclarecimento das opções da mulher e com completa informação clínica sobre o procedimento. Acresce ainda que a lei vai estipular um prazo dentro do qual a intervenção pode ocorrer (até às 10 semanas) apontando uma solução responsável e equilibrada, que atende à fase da gravidez em que o risco é menor para a mulher grávida, claramente estabelecendo limites. Finalmente, porque a introdução da referida excepção à punição também não vai acarretar a eliminação do crime de aborto, que se manterá previsto no artigo 140º do Código Penal para as situações em que não houve despenalização.

Liberalizado, sem regras, sem controlo e sem qualquer garantia de segurança para as mulheres, encontra-se agora o aborto clandestino, ficando ao critério de quem com ele lucra definir as condições em que se realiza. Manter a actual lei em vigor através de uma resposta negativa no próximo domingo é manter esta realidade. Regulado, seguro e susceptível de ser encarado pela sociedade como um problema a estudar e a resolver com respostas articuladas e informadas é aquilo que uma resposta afirmativa ao referendo vai acarretar.


Pedro Alves




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3 Comments:

At 9 de fevereiro de 2007 às 19:24, Anonymous Anónimo said...

Num país onde tanto se barafusta contra os partidos e se defende maior cidadania é curioso como um acto eleitoral em que a palavra é dada aos cidadãos nos faz saudades das eleições partidárias. Temos assistido a uma campanha de desinformação, uma verdadeira guerra civil de palavras. Aliás, esta campanha está para uma guerra civil como umas eleições partidárias estão para uma guerra convencional, é uma luta sem regras, limites, princípios ou respeito pelo adversário.

Foram mais frequentes as tentativas de lançar a dúvida do que as de esclarecer, de aumentar a abstenção do que o número de eleitores, de provar que o adversário não tem razão do que convencer que as nossas ideias são as certas.

Um dos aspectos mais curiosos desta campanha está no facto de que a esmagadora maioria dos que nela participam não serem o alvo da lei que uns querem banir e outros manter. Desde logo os homens não abortam, os eclesiásticos são castos, os católicos mais fervorosos limitam as relações sexuais à procriação e em caso de aborto temem mais a excomunhão do que a vergonha social de um crime mesmo que sem pena. Os "beligerantes" não estão a defender o seu próprio interesse, não estão preocupados pessoalmente com a manutenção ou a revogação da lei, estão a bater-se pela criminalização ou descriminalização das mulheres, muitas das quais estão em silêncio, mais do que uma luta entre dois modelos de sociedade é uma batalha por convições.

Há quem seja a favor da despenalização e os que são contra, mas mais do que a defesa dessas duas opiniões legítimas estamos a assistir a uma guerra santa, está em causa um dos poucos bastiões anti-aborto que a Igreja Católica tem conseguido manter na Europa. A Igreja não pode perder mais esta batalha, cada vez mais a Europa não aceita os valores éticos e morais que a Igreja consideram a sua matriz civilizacional, isto é, cada vez mais a Igreja Católica tem a sua sede longe dos seus rebanhos mais obedientes.

Mais do que o aborto o que se discute neste referendo é se na próxima semana o nosso clero continua orgulhoso por o seu castelo ter resistido ou se terá que se apresentar na Santa Sé envergonhado por ter perdido tão importante bastião.

 
At 9 de fevereiro de 2007 às 19:46, Anonymous Anónimo said...

respeito o coment...... mas não concordo com ele... menhum humano têm poder para tirar a vida a outro... a vida é um direito universal a que todos temos direito... o aborto legal ou NÃO.. é sempre humilhante e vergonhoso para quem o faz... um crime .. um atentado à VIDA.
Não é uma criancinha inofenciva que têm Culpa dos actos de IRRESPONSABILIDADE de quem lhes dá vida... Claro... depois vêm aquela das criancinhas abandonadas no lixo... sim senhor... quem cometeu esse acto barbaro... Têm que ser condenado... se Não têm condições.. ainda há alguns orfanatos... o problema disto tudo é o NASCER ... Porque ao nascer, hà aqueles que têm berço de ouro e outros de lata.

Mas na vida nem todos temos a mesma sorte.... e com vontade tudo se cria... a minha avó era extremamente pobre e no entanto criou 10 filhos e antigamente a fome apertava segundo ela me conta ... e no entanto nunca abortou ... O ABORTO não deve ser confundido com factores socio-economicos .... mas sim igualado a um acto terrorista contra a humanidade...

Devo dizer que este referendo é injusto ... porque ambas as hipóteses não servem ... pelo facto de serem directas (´´ ou sim ou Não``), sou a favor do aborto em duas condições, Violações ( QUE SEJAM PROVADAS E NÃO ENCENADAS) e no caso de criancinhas com mal formações... das duas hipóteses que podemos escolher a mais Humana é o NÃO apesar de ambas as respostas serem injustas... é a minha opinião... REPITO MAIS UMA VEZ QUE RESPEITO A VOSSA..

V.G.

 
At 10 de fevereiro de 2007 às 03:56, Blogger MTF said...

De facto, a vida é o direito dos direitos, o direito magno, fundamental e inviolável. Todavia, a vida com dignidade também é um direito. E o direito à familia? E que dizer da saúde pública? Sim, estamos perante casos de saúde pública e de dignidade humana. Mas caro senhor, está baralhado! Pensei que depois de se ter discutido ad nauseum esta questão, que o senhor já tivesse compreendido que ninguém está a defender o aborto, estamos sim, a defender a sua despenalização. Coisa totalmente diferente. Penso que ninguém defende algo que é manifestamente violento e traumático para a mulher. Defende-se sim, já que são feitos, que se façam com segurança e que se acabe de vez com esta hipócrisia social de leis que não se aplicam e de mercados paralelos onde se jogam vidas e se atenta, e aqui sim contra a vida humana. Pense e vote em consciência.

 

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