sexta-feira, 20 de abril de 2007

OS NÚMEROS DO NOSSO DESESPERO

Os números de que vamos dispondo são aterradores. O mundo vai de mal a péssimo, e o novo sistema capitalista, a globalização, tão exuberantemente aplaudido por alguns ventríloquos, acentua desigualdades e cria cada vez mais ressentimentos e rancores.

Não vale a pena ocultar os factos, ou estabelecer paralelismos comparativos com os socialismos. Exactamente pelo facto de que nenhum socialismo ainda existiu. Aproxima-se o apocalipse, comentou, há meses, com demonstrado exagero, o jornalista Jean-François Khan, director do semanário Marianne. Mas algo de extremamente grave, isso sim, está mesmo para chegar.

Aliás, os mais tenazes defensores daquele imenso projecto político-económico, começaram a tomar preocupadas distâncias. As desigualdades, as injustiças, a selvajaria como trajectos para fins infames só pode provocar agitação e sobressalto. A CIA, cujos propósitos não são propriamente adequados a figurar num quadro religioso, revelou, em minucioso relatório, que a economia global vai espalhar conflitos e estabelecer uma diferença maior entre vencedores e perdedores. Grupos excluídos enfrentarão profunda estagnação económica. O documento é do ano 2000. Nestes sete últimos anos, os conflitos armados atingiram proporções inauditas, e a subsequente inquietação social espalhou-se um pouco por todo o planeta.

Fonte inesgotável de erros e de crimes hediondos, a globalização, desde a sua estrutura ideológica até à organização da sua teia reticular, só tem causado dor, sofrimento, destruição e miséria. "A globalização parece aumentar a pobreza e a desigualdade (?) Os custos de ajustamento para maior abertura são suportados, exclusivamente, pelos pobres". Acentua o Banco Mundial, num texto que merecia chamadas de primeira página e abertura em telejornais. 54,7 por cento da humanidade vivem na miséria ou em extrema pobreza. O Banco Mundial, como se sabe, não é dado nem à generosidade nem à filantropia. Não existe para isso: pelo contrário; e a circunstância de se referir, em termos tão cáusticos, à situação social do planeta creio dever merecer a atenção considerada de todo o homem de bem.

O crescimento económico é falacioso. Não possui duas faces, como nos pretendem inculcar; é um processo unívoco, de enriquecimento desenfreado das duzentas famílias que mandam no mundo.Pouco ou nada os governos poderão fazer, lamentava-se, há semanas, o economista irlandês Johnson Yils. Pura verdade. Porém, os governos estão manietados porque deixaram que os manietassem. Admite-se que o ideário conservador sustente, com entusiasmo, a globalização. Mas nem todos os conservadores a apoiam. O que revolta é a total passividade, o absoluto servilismo adoptado pelos chamados partidos de Esquerda, ditos socialistas, que envergonham a sua grandiosa história antecedente.

O Banco Mundial informa que mil milhões de pessoas (as recenseadas oficiais da fome, porque há as que se não encontram referenciadas) vivem, em todo o mundo, com menos de 73 cêntimos por dia. Em todos os continentes, a desgraça é ultrajante. Mas em África o ultraje é um pavor endémico. Por outro lado, solertes comentadores estipendiados persuadem-nos de que onde nascemos, vivemos e estamos é local de pertença. Tudo isto configura uma impostura, escorada em textos fortemente convincentes, subscritos por vigorosos intelectuais independentes e de sólida formação filosófica.

O sentimento de pertença é um monstruoso embuste. Organizaram o mundo de forma a considerarmos haver coisas (por exemplo: a pátria) que são nossas, que nos pertencem, que temos de as defender. Nada disso: defender quê? A terra dos outros, as propriedades dos outros, os prédios dos outros, os tesouros dos outros, os castelos dos outros. Afinal, que nos pertence?, de que somos proprietários?

De nada! De vagas emoções impostas, de discutíveis valores históricos. O que nos resta é cultivar os princípios da solidariedade, da fraternidade, da entreajuda na dor, no desespero, na tristeza. Os documentos que nos são propostos apenas revelam parte mínima de um todo substancial. A informação, por demasiada e extensa, deixou de ser tratada e reduzida ao grau significante do conhecimento. Não há tempo, nas Redacções dos jornais, de se proceder à joeira dos factos e dos números.

Garrett ensinou-nos, nas Viagens na Minha Terra, quando custa um rico a um país. O livro é de 1845, três anos antes do Manifesto Comunista, de Marx. Diz o seguinte: E eu pergunto aos economistas políticos, aos moralistas, se já calcularam o número de indivíduos que é forçoso condenar à miséria, ao trabalho desproporcionado, à desmoralização, à infâmia, à ignorância crapulosa, à desgraça invencível, à penúria absoluta, para produzir um rico?

A actualidade da análise garreteana é por de mais evidente. E coloca-nos em contacto com as novas realidades, incentivando-nos a decifrar essas novas figuras de autoridade, que surgem envolvidas em névoa, sem rosto e sem identificação nominal, mas que dominam e manobram os nossos destinos.

Que democracia serve a globalização? Ou será a globalização que se serve das várias e deformadas formas de democracia existentes no planeta? A fragilidade do tempo em que vivemos assenta, essencial e fundamentalmente, na dubiedade dessa democracia globalizada. Repare o Dilecto que nada disto é discutido, polemizado, confrontado. E, no entanto, é deste almofariz que saem os grandes e dilemáticos problemas da nossa época. Os quais, no caso português, não encontram resposta, adequada ou desadequada, por parte da impropriamente chamada classe política. Estamos, em Portugal, coagidos a aceitar uma variante que, rigorosamente, o não é. PS e PSD são os partidos de poder. Todavia, em consciência, podemos aceitar a idoneidade ética, ideológica, política, intelectual, de uma casta que alterna entre si as benesses que as funções e o mando lhe proporcionam?

A frivolidade associou-se, desde há anos, à pouca-vergonha, à mentira, à dissolução do que presumíamos serem os mais vigorosos elementos da constituição moral de um país. Há qualquer coisa de trágico e de demencial quando nos apresentam as coisas como factos consumados, ao mesmo tempo que empurram o País para um precipício insondável. Em rigor, pode-se falar da inevitabilidade da Ota ou do TGV quando o analfabetismo grassa, a miséria está instalada entre nós, o desemprego atinge números inquietantes – e no horizonte visível tudo de mau nos aguarda?


B.B.

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