sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

O MÁRIO ALBERTO JÁ LÁ ESTEVE

(Na segunda-feira, 28 de Janeiro, p.p., um dos maiores cenógrafos portugueses, Mário Alberto, foi homenageado, no Teatro Nacional D. Maria II. Evoco, nesta coluna, o meu velho companheiro inconformado)

Poucas vezes a definição de homem livre se aplicou tão bem e tão genuinamente como a Mário Alberto.

Ele pertence a uma estirpe, cada vez mais rara, que sempre teve em conta as individualidades de cada um sem as fechar nas diferenças fundamentais que determinam o respeito mútuo e a dimensão colectiva.

Em nome desse conceito de liberdade a sua escolha consiste em não admitir nenhum limite, excepto o que interfere com o respeito pelo outro.

É perigoso, viver assim.
Mário Alberto nunca desistiu de assim viver.

Há homens que têm de conquistar, duramente, o seu lugar no mundo.
Há outros a quem esse lugar é, simplesmente, oferecido.
Ele pertence ao primeiro grupo.
E aprendeu, nas ruas da noite, entre bêbados e profetas, sonhadores, putas, batoteiros, brigões, poetas e outra bela gente de lugares escarpados que nem tudo se resume a ganhar ou perder.
E ensinou-nos que, se cada pessoa juntasse o seu sonho ao sonho de outra pessoa, o tamanho do sonho seria imensurável.


Todos nós devemos alguma coisa ao Mário Alberto.
Todos nós invejamos alguma coisa do Mário Alberto.
É uma personagem fabulosa, que desenhou os mapas da aventura criadora para neles se inserir como um português das sete partidas. E sempre o vi como um homem sabedor das regras métrica
s para as infringir, por horror às respostas automáticas.
Um grande desenhador, um grande cenógrafo, um grande pintor.
Mas, também, e talvez por isso mesmo, um grande pecador: um blasfemo, um herege que jamais destituiu a cortesia, a lealdade, a amizade, a solidariedade, a admiração dos seus códigos de honra e de comportamento.

Vivemos num tempo antagonista de gente como o Mário Alberto.
Um tempo gatuno, que vai roubando, minuciosamente, para as aniquilar, as esperanças na construção de um novo laço social.

Em frente da minha mesa de trabalho está um quadro do Mário Alberto; um quadro glauco, um bicho estranho que congela todos os olhares, que apaga pela morte o pouco que nos resta de felicidade.
O Vira-Casacas, eis o título.

Eis a acusação muda, porém dramática e incisiva, a uma época onde a desumanização e a indiferença resultam da traição aos compromissos; onde os modos de regulação da acção social e do exercício da política se dissolvem na indignidade do pragmatismo – obscenidade reservada a todas as capitulações.


A vida e a arte do Mário Alberto são unas e inseparáveis da obrigação ética e estética. E correspondem, por inteiro, às suas exigências morais.
Há desenhos e pinturas dele que pertencem à selecta mais rigorosa das artes plásticas mais complexas.

Tudo, nele, se exprime a título pessoal: tudo, nele, está associado a uma visão do mundo progressista, que permite a aprendizagem da vida comum e o projecto ontológico para a construção de um mundo melhor.

Nunca uma inteira submissão, seja ela qual for; nunca o reconhecimento de limites à liberdade, sejam quais forem as circunstâncias.

A moral a contrariar ou, pelo menos, a opor-se à indecência da História.

Essa absorção de um lato conceito de liberdade pode explicar, talvez, o despojamento com que sempre tem vivido. E o recurso à arte será o modo que entendeu eficaz para manifestar a sua abjecção e demonstrar a sua recusa por esta época e pelos seus protagonistas políticos.
Uma arte com endereço, entenda-se.
Uma arte que não sanciona a menor das falhas de carácter – mas que, igualmente, recusa, até ao fim, deixar-se definir pelos outros.
Mário Alberto criou, há muitos, muitos anos, o seu pessoalíssimo universo livre, porque sempre se sentiu mal, e ultimamente muito pior, com o mundo que lhe impunham como alternativa.

Bebemos muito, os dois.
Percorremos muitas noites, com o antigo respeito que a noite exigia e a amizade saudava.
Havia, nessas deambulações por bares, tabernas, locais absurdos e perigosos, um modesto trilho de estrelas e um humilde rasto de poesia.
Lá se viam o Manuel da Fonseca e o Carlos de Oliveira; o Fernando Lopes e o Paulo Renato; as coristas do Parque e o Almeida da Facada; o Mário Ramiro e o Maia Cigano.
Passavam o João Villaret, rodeado de respeito e de grandeza; e a Ivone Silva mais o empresário Zé Miguel; sentavam-se à mesa do Ribadouro o José Gambôa e o Carlos José Teixeira, o Raul Solnado, o Armando Cortez, o José Viana, o Fernando Gusmão – outros, muitos mais outros, que melhoravam as nossas existências e as enchiam de episódios eloquentes e extraordinários.
É uma história cheia de lendas e de mitos, porque nenhuma história é calorosa se não estiver mobilada de sonhos e utopias.

Fomos comparsas, por vezes compassivos, por vezes irónicos, dos desconcertos dos outros e dos nossos.
O País estava dividido entre eles e nós; entre a distância dos que mandavam, daqueles, recalcitrantes, que lhes não obedeciam.
Ocasionalmente, no Ribadouro, o Afonso, empregado de mesa, avisava-nos: Cuidado! Estão por aí alguns pides!
A noite era um outro mundo, impondo a ideia de que nos oferecia outra perspectiva intelectual, humana, vital, livre e criadora.
A noite era um cenário pictórico e o Mário Alberto uma sua personagem central, irónico, sarcástico, brigão, riso claro, eficaz, disperso, exacto, exemplar, infalível.
Homem de muito mundo e de todos os sítios, porém tenazmente ancorado no Parque Mayer, reduto e paliçada de selvagens alegrias.

Não sei ver o Mário Alberto afastado dessas paragens, nem sem um escárnio na frase, uma zombaria na conversa, um sarcasmo à democracia administrativa – e muito menos desprovido da esfuziante alegria de viver.
Há uma frase de Baudelaire de que gosto muito: É preciso ser sublime sem interrupção.
Mário Alberto tem-no sido.
Nas aflições e nos regozijos, nos apuros largos e nas apertadas abastanças; nas dúvidas, nas indecisões e nos despropósitos.
Cabelos brancos ao vento; olhos de intempérie, quase desorbitados, gesto felino e feliz.
Vai ali e vem já.
Está aqui e já foi.
É no exercício de viver que reside a coragem de estar vivo.

Pode a distância ser longa,
pode ser longa a jornada
mas sempre alguém chegará
onde um sonho antes chegou
– escreveu Armindo Rodrigues,
o imenso poeta que sempre andou à
procura da chama útil e da canção cintilante.

Quando o sonho chegar, o Mário Alberto já lá esteve.

B.B.

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