sexta-feira, 14 de março de 2008

O PODER DA "RUA" [ II ]

As impressionantes manifestações registadas
A descida à rua de milhares e milhares de manifestantes irritou alguns articulistas com pigarro, para os quais a existência do facto moral é um anacronismo absurdo.
Um deles, que se diz historiador, chega classificar de ausência da razão as demonstrações de pura repulsa dos professores, cercados pelas imposições precipitadas.

A artigalhada apareceu num matutino fundado para resistir à l’air du temps, e, agora, ideologicamente neoconservador, com assinalável quebra de credibilidade – e de tiragem.

Na verdade, os professores não contestam as avaliações, sim o que lhes subjaz de improviso e de ligeireza.
Os velhos mestres da suspeita estabeleceram as confusões habituais a fim de enxovalhar uma profissão admirável e tão vilipendiada.
O poder da rua foi (tem sido, é) de tal modo persuasivo que o Governo tem vindo a alterar decisões até agora inabaláveis.
É razoável que assim proceda.
A nossa História próxima recente está pontuada de episódios de idêntica natureza, que nobilitam os políticos e engrandecem a substância da democracia.

A imponente manifestação dos cem mil assinalou, de novo, à luz das urgências contemporâneas, a consciência moral de uma população, preocupada com as derivas políticas mas que age impulsionada por motivos cívicos. E quando alguns preopinantes estipendiados e ex-trotsquistas convertidos aos prestígios do capitalismo declamam um anticomunismo protozoário, como justificação das próprias debilidades de carácter, a atoarda já não cola.
O que os obsidia é ver como os ofendidos se revoltam e como a sua revolta os qualifica de indignos de um combate que lhes não pertence.
Afinal, esses ex, que estavam à esquerda de tudo, constituíram-se como ponte de passagem para a organização da sua própria vidinha. E não são tão poucos quanto isso.

A rua foi, no fascismo, a explicação veemente e extremamente corajosa da indignação de um povo, perante um Governo ilegal porque não saído do voto. É uma história exaltante.
Nos dias 5 de Outubro (comemoração da República) e 1.º de Maio (Dia do Trabalhador) grupos de pessoas iam-se juntando, concentrando-se nas praças e nos largos principais das cidades.
Em Lisboa, no Rossio. Fui espectador e até protagonista de alguns episódios dramáticos.
Quando o Rossio apresentava um aspecto significativo, pela quantidade de gente, agentes da PSP e da PIDE/DGS tapavam as ruas circundantes.
Os manifestantes começavam, então, aos gritos de Abaixo o fascismo!, Viva a Liberdade!, Viva a Democracia!
Eram violentamente espancados por polícias à paisana e por legionários espalhados por aqui e por além.
Entendiam, os resistentes, que o acto de estar possuía uma forte componente moral. E era verdade. O antifascismo não representava nenhuma corrente ideológica: era uma posição moral; por isso reuniu republicanos, monárquicos, socialistas, comunistas, anarquistas, católicos.

Contra o delírio histórico, a barreira de homens honrados e livres, independentemente de serem de Direita ou de Esquerda.
O regresso da Democracia, com a II República, advinda do 25 de Abril, recompôs o tecido político, e cada qual foi para o partido que correspondia às suas convicções.
Quando, há tempos, alguém disse que os antifascistas dispunham de excesso de memória histórica, a afirmação estava certa: evocava o horror que se viveu, e que, até hoje, se não restituiu, na sua totalidade, à pedagogia do conhecimento.
Como se fez em França, e está a fazer-se, por exemplo, em Espanha. E a rua foi o local exacto (como, em Democracia, o é também) para a exposição dos nossos desagrados.

Quem tem medo da rua?
Os que desprezam a evidência dos factos.
Aqueles que o decurso da História aponta à execração popular.
A sociedade do silêncio e da traição.
É instrutivo verificar que aqueles dos governantes saídos da abdicação e do perjúrio, outrora inflamados gritadores, deixaram de comemorar, na rua, a data que nos reentregou a liberdade.
Há, nesta gente, uma estranha e doentia mortificação, que a impele ao insulto, à injúria, à mentira e à calúnia.
Claro que, quando saem do Governo, são alojados em lugares seguros com salários chorudos; porém, estão ferrados com a ignomínia e repelidos pelo nojo que causam.

Os jornais dizem que o Governo tem recuado.
Não será a palavra mais rigorosa.
Diria que o Governo tem reflectido melhor e emendado a mão.
As opiniões críticas que se têm registado em alguns jornais, não em todos, em alguns, conseguiram atenuar e, até, abafar, o alarido de comentadores obedientes ao solfejo do suserano.
A rua, na sua trivial realidade, é consequência e concentrado de todas as vozes.
O individualismo teatral sempre foi contrário à vontade de felicidade e ao cuidado de coerência testemunhados por aqueles que não andam na vida com esfuziante leviandade.
Dentro de pouco tempo, esses que tais ajeitar-se-ão às modalidades do momento.
Como na invasão do Iraque, os que a apoiaram já tentam remanejar o que afirmaram. A conivência, neste último caso, atinge territórios malditos. Porque o que aconteceu e acontece no Iraque configura as dimensões dos crimes de guerra.

Num belíssimo verso de um belíssimo poema, Vitorino Nemésio escreveu: A hora do extensível força a possibilidade.
Nada mais certo.
A possibilidade das coisas torna extensível as infinitas possibilidades do nosso querer. E o homem, quando quer, consegue tudo quanto quer.


B.B.

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1 Comments:

At 15 de março de 2008 às 22:09, Anonymous Anónimo said...

Cem mil professores na rua são um número esmagador. Significa que dois em cada três docentes do ensino público – são cerca de 140 mil no ensino básico e secundário – participaram nesta jornada de protesto contra a ministra da Educação.
O pretexto foi o modelo da avaliação de desempenho aos professores, mas as motivações que conduziram a este impressionante coro de protesto, numa classe ordinariamente recatada, são bem mais profundas e já vinham detrás.

Um somatório de mudanças e reformas que atingiram a classe docente, em matérias como o congelamento de carreiras, o aumento da idade da reforma para os 65 anos e, acima de tudo, o novo estatuto do professor, assente apenas no currículo dos último sete anos de carreira (porquê apenas 7 anos e não toda a carreira profissional?), e que dividiu os professores em duas castas: os "titulares" e os não "titulares".

Este mal estar crescente, esta bolha de insatisfação acabou por explodir com o processo de avaliação imposto onde se criaram alguns absurdos, como este que passamos a referir na primeira pessoa:

"Sou professor do ensino secundário de história, tenho um mestrado e um doutoramento (tirados no ISCTE) em história contemporânea, ou seja, sou doutorado na área científica em que sou docente, mas vou ser avaliado (de acordo com as grelhas) científica e pedagogicamente na minha área de docência por um licenciado em geografia (coordenador de Departamento), e vou ser também avaliado pelo presidente do Conselho Executivo, neste caso um bacharel em fim de carreira!"

Este depoimento, assinado por um professor, foi retirado do blogue de Pacheco Pereira, o "Abrupto", e revela a raiz do problema que agora explodiu na rua.
A incomodidade de uma classe que foi mal hierarquizada, numa divisão pensada e criada em gabinete e, na sequência do erro (que ninguém quis corrigir, mas para o qual os sindicatos alertaram), chegou-se à situação do bacharel a avaliar o doutor.
Para além da farsa que a situação traduz, fica o desconforto do professor que vai ser avaliado e do professor que o vai avaliar.

Foi provavelmente esta a mola da manifestação que juntou os 100 mil professores em Lisboa. E singular paradoxo, a ministra que em tempos conseguiu conquistar a opinião pública com as mudanças introduzidas na escola e diminuir o peso dos sindicatos na Educação, acabou agora a devolver-lhes, por obstinado erro político, a força de uma classe unida, e que provou na rua que a escola só existe com eles.

Ao sinal desta impressionante convergência (até a esposa de António Costa, educadora de profissão, se juntou à manifestação) responde o governo que não vai recuar (palavra proibida no dicionário político de Sócrates), mas adoça o discurso.
O secretário de Estado adjunto da Educação já veio dizer (ou repetir, na versão da ministra) que as escolas não têm de avaliar os professores até final do ano lectivo, e que estão a ser criadas alternativas.

É óbvio que o governo cometeu o erro grosseiro de desvalorizar o descontentamento crescente dos professores e o peso da organização sindical.
Maria de Lurdes Rodrigues merecia melhor pelo que já fez, mas pode ter comprometido deste modo a grande reforma da Escola que iniciou tão bem.

 

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