domingo, 22 de junho de 2008

O ESTADO DA UNIÃO



Os países Europeus, sobretudo os grandes e com mais responsabilidades, não podem deixar-se submeter às decisões dos mais pequenos, muito menos aos resultados de um referendo de que resultou uma maioria de escassos milhares de votos. Imaginar que toda a Europa possa ficar condicionada pelos irlandeses é quase uma deficiência intelectual. Tal como imaginar que a União, de carácter federalista, se possa fazer com a unanimidade dos Estados e dos povos. A França e a Alemanha, ajudadas pelos seus clientes e arrastando atrás de si os pequenos países que não se importam de ver aumentar as suas dependências, vão pois tomar as providências necessárias para que a constituição do Tratado de Lisboa seja aprovada. No que serão ajudadas pela enorme, luxuosa e apátrida burocracia europeia. Com ou sem Irlanda. Com ou sem favores prestados e dinheiros dados aos irlandeses. Não podia deixar de ser assim. Só nos contos de fadas é que os gnomos mandam e os anões derrotam os gigantes.

O referendo irlandês teve as suas virtudes. Revelou, uma vez mais, a crise europeia. Exibiu a verdadeira natureza desta União. E mostrou, sem deixar dúvidas, o caminho que esta se prepara para seguir. A reforma das instituições europeias ficará na história como um caso exemplar de esbulho de independências, de esmagamento pacífico de autonomias e de tentativa de destruição de culturas e de carácter. Toda a gente percebeu que a saga da aprovação do Tratado de Lisboa, depois de Maastricht e de Nice, tem como principal objectivo o de retirar poder aos povos e de lhes administrar as soluções das elites esclarecidas. O Tratado foi inventado para retirar aos povos a possibilidade de os discutir e aprovar. O Tratado é incompreensível? A Constituição é absurda? Tanto melhor. São documentos que, justamente, não devem ser compreendidos. E que oferecem explicações úteis para a indiferença crescente dos cidadãos. Votam em eleições e em referendo, dizem os iluminados, por razões nacionais e não por razões europeias! Votam, acrescentam, por causa da crise económica, das desigualdades, dos preços dos combustíveis, das questões laborais e da imigração. Na Irlanda, então, para cúmulo, dizem eles, o não foi motivado pelo aborto, pela eutanásia e pelos impostos. Tudo, asseguram, questões locais, paroquiais, nacionais, sem a importância dos reais problemas europeus. Estes argumentos, infantis e destituídos de qualquer inteligência, são repetidos candidamente por todos os servos, sobretudo juristas, da plutocracia europeia. E ninguém, entre essas luminárias, se deu ao trabalho de reflectir nas últimas eleições europeias que deram dois resultados inesquecíveis. Primeiro, uma enorme abstenção. Segundo, o facto de quase todos os que perderam essas eleições foram recompensados, directa e indirectamente, com cargos, responsabilidades e decisões nos actos que se seguiram. Chirac, Schroeder, Tony Blair e Durão Barroso, entre outros, perderam as eleições, mas, pelo jogo do federalismo, moldaram a União que se seguiu! De qualquer modo, ficámos a saber, mais uma vez: para os dirigentes europeus, o emprego, os impostos, a liberdade, a demografia, a família, o sistema de saúde, a educação, a idade de reforma, a legislação laboral e as desigualdades sociais não são questões europeias. Não são problemas relevantes!

A crise, muito séria, é a do desajustamento entre as intenções e as realidades. A do abismo irreversível que se instalou entre os Estados e as classes políticas, por um lado, e os povos e as sociedades, por outro. A do desvirtuamento definitivo do, sempre equívoco, projecto europeu, que vai perdendo os valores, que tanto proclamou, da diversidade, da autonomia e da liberdade. A da futilidade dos desejos das elites políticas europeias que pretendem unanimidade e federalismo, homogeneidade e uniformização. A Europa é vaidosa como uma velha gaiteira. E arrogante como um fidalgo falido de smoking coçado. Os seus dirigentes gabam-se do Estado de protecção mais generoso do mundo, da construção política mais original, da cultura mais consistente, das mais belas cidades, da liberdade mais enraizada e da paz mais duradoura. Ano após ano, os mitos vão ruindo. A cultura europeia é americana. O trabalho é imigrado. A produção é chinesa. O capital estrangeiro. A economia frágil. A ciência dependente. A tecnologia subalterna. A impotência manifesta. Os europeus não querem correr riscos, nem tratam da sua defesa. Estão disponíveis para negociar com o diabo. Não têm energia, não possuem forças armadas. Comportam-se como se tivessem um inimigo comum, os Estados Unidos. Não os terroristas, não as ditaduras, mas os Estados Unidos. Os europeus são cada vez mais utilizados por terceiros endinheirados que assim perdem o respeito por tanta cultura, tanta originalidade e tão glorioso passado. Os dinheiros do petróleo, dos armamentos, de todos os tráficos ilícitos e da grande especulação começam a mandar na Europa e a condicionar as suas políticas e a sua diplomacia.

A União vai sair, aparentemente, desta crise. Dentro de um ou dois anos, uma nova engenharia terá sido encontrada. Dentro ou fora, a Irlanda deixará de incomodar. Novas perturbações serão evitadas por novos mecanismos. Alguém virá dizer que a crise está ultrapassada e que a União entrará numa nova era. A mecânica da Comissão, do Conselho e do Parlamento Europeu estará oleada e preparada para funcionar a 27 ou mais. As decisões serão mais fáceis. Evidentemente, sabe-se, haverá alguns problemas. Na economia, na sociedade, no comércio externo, na ciência e na tecnologia. Forças centrífugas em acção. Dificuldades no emprego e no crescimento económico. Problemas sociais e demográficos. Conflitos laborais e desigualdades sociais. Deriva dos sistemas de saúde, educação e segurança. Aumento dos preços da energia e dos alimentos. Certo. Mas são todos problemas locais. Nada disso é europeu. A grande Europa, a grande União passa ao lado disso. Passa ao lado de questões menores.


António Barreto

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3 Comments:

At 23 de junho de 2008 às 21:09, Anonymous Anónimo said...

.... segundo a opinião da corja, os cidadãos da ilusão europeia são uns completos idiotas.

se os cidadãos não entendem a política, é porque não lhes é explicada
O 'não' irlandês deve convidar (...) a uma reflexão sobre (...) a necessidade de uma maior pedagogia.
eu, não preciso que me expliquem nada, não vou meter explicadores nem quero saber da linguagem dos políticos e muito menos estou interessado na pedagogia desses senhores!

a constituição europeia, travestida de tratado de perto de lisboa está morta e enterrada. e as manobras de ressuscitação, com todas as batotas que a corja está a ensaiar para impor essa constituição à revelia dos cidadãos, deverão ter por parte destes o mais veemente repúdio!
a rua é um óptimo local para expressar a vontade e o sentimento dos cidadãos que a corja, num conluio quase perfeito, quer ignorar!

 
At 23 de junho de 2008 às 21:23, Anonymous Anónimo said...

Nem sol na eira nem chuva no nabal
Com a aprovação da semana das 65 horas pela Comissão Europeia, aconteceu o que já há muito tempo eu antevia, a derrota do modelo de organização social europeia, construído no pós guerra para criar aqui uma sociedade decente, que servisse de contraponto às sociedades totalitárias vigentes para lá do muro de Berlim. Caído o muro, tornou-se desnecessário manter por aqui tais benesses, e a pretexto da globalisação, vá de caminhar para o século XIX...
E agora aqui a esquerda, as esquerdas europeias, têm uma imensa responsabilidade. Sempre achei incongruente a esquerda reinvindicativa, mas desligada de uma postura proteccionista- há palavras que pareçem estar a arder no léxico politico- não é possivel defender o comercio livre e os direitos dos trabalhadopres ao mesmo tempo.
Não há sol na eira e chuva no nabal.
Eis que chegou o troco, a Europa das grandes empresas perde votações, como agora na Irlanda, mas não se esquece de velar pelos interesses de quem realmente risca alguma coisa.
A esquerda teria feito um bom trabalho, se o que estivesse em discussão fosse, não a semana das 65 horas, mas a taxação severa do comércio com os países que permitem semanas de trabalho com 65 horas.

 
At 25 de junho de 2008 às 19:37, Anonymous Anónimo said...

ALGUÉM NOTOU?
Não se dispõe de indicadores que não sejam impressionistas, mas a sensação com que se fica é a de que grande parte da opinião pública europeia reagiu com um misto de simpatia e indiferença ao "não" saído do referendo irlandês. Com simpatia, por ser difícil enjeitar a legitimidade e a clareza do posicionamento do eleitorado nessa consulta directa; com indiferença, por não haver sinal de grandes preocupações quanto ao futuro da Europa num conjunto de populações nacionais cada vez mais desmotivadas e alheadas em relação a ela.

Não será pois exagerado dizer-se que um hipotético "sim" irlandês não tinha esteios axiológicos ou políticos significativos no âmbito geral de uma União em que muito poucos se mostram convencidos de que o Tratado de Lisboa corresponda a uma necessidade premente.

Já nem é preciso falar do passe de ilusionismo que o Tratado representa em relação à Constituição abortada, acrobacia que mais não fez do que, por um lado, acentuar o divórcio e a desconfiança crescentes entre os cidadãos e as instituições da União Europeia e, por outro, confirmar as veleidades de formação de um directório de patente hegemonia franco-alemã para a Europa.

O que aconteceu na Irlanda deve ser pensado no plano dos princípios, sem necessidade de se extrapolar de umas questões para outras (referendo ou não referendo, países que ratificaram o Tratado ou países que o não fizeram), ao sabor dos diferentes ordenamentos constitucionais, das conjunturas políticas e dos interesses em presença.

Se a constituição irlandesa exige o referendo, a UE não pode penalizar a Irlanda, nem por realizá-lo, nem pelo resultado verificado, assim como não pode sancionar outros países em que o desfecho do processo de aprovação, por hipótese, venha a ser identicamente negativo. E a UE muito menos pode avançar para soluções parcelares de reconfiguração institucional. Tem de encontrar uma saída de outra natureza.

O problema é que já não basta a equiparação da legitimidade da aprovação parlamentar à legitimidade referendária, mesmo que tal equiparação fosse correcta na matéria e, no limite, ocorre um paradoxo que poderia enunciar-se assim: se toda a gente pensa que o Tratado de Lisboa chumbaria num referendo europeu, essa convicção torna-se um indicador político de desconfiança incontornável e por isso mesmo deixou entretanto de haver condições para o Tratado entrar em vigor a menos que tal referendo se faça. A Irlanda não fez mais do que tornar esta situação ainda mais visível e a aprovação do Tratado em cada um dos outros países ainda mais frágil.

A ressaca do referendo irlandês na comunicação social espelhou bem uma reacção a dois tempos por parte dos defensores do Tratado de Lisboa.

Primeiro, ouviu-se uma série de considerações severas e que iam quase todas na direcção de fazer impender sobre a Irlanda e o seu Governo a responsabilidade do encontro de uma solução, como se esta fosse uma simples questão do foro da intergovernamentalidade (!!!) e nada mais do que isso.

Depois, a atitude tornou-se mais nuancée e mais cautelosa, com pistas benevolentes avançadas para a compreensão do resultado, num clima em que passava a ser evidente o respeito por aquela manifestação de soberania. Era como se as "boas práticas" tivessem chegado à política por concessão graciosa daqueles mesmos que as tinham ignorado na altura em que impuseram o Tratado.

Como enquadrar pois a atitude irlandesa na perspectiva europeia, sem traumas, acusações ou rejeições e, sobretudo, sem pôr em causa os valores e princípios estruturantes, o equilíbrio do sistema e a dinâmica da construção da UE?

Na verdade, ninguém é detentor de uma boa resposta para esta questão, a não ser num sentido: o de que a prudência é, neste momento, a reacção mais aconselhável, sendo necessário muito tacto para agir nesta conjuntura e mais valendo partir-se do princípio de que o Tratado de Lisboa terá o mórbido destino da Constituição Europeia, o que é o mais provável.

E entretanto, surge uma boa pergunta: alguém notou que a Europa se tenha tornado ingovernável por falta do Tratado?

Vasco Graça Moura

 

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