segunda-feira, 29 de junho de 2009

RESPIRA

Depois de atravessar o oceano e ver o que existe do lado de lá, depois de traçar linhas irregulares no mapa da Europa, faço a pé o caminho entre a minha casa e o supermercado. Sou um privilegiado enquanto avanço com um saco dobrado na mão, a carteira no bolso interior do casaco, a conhecer todos os passos deste caminho. Posso descer pela escadinha do jardim, por baixo da oliveira que, no Outono, dá azeitonas que ninguém aproveita, ou posso seguir pela rua principal, passar em frente à paragem de autocarros e atravessar a passadeira. Penso em muitas coisas enquanto faço esse caminho: tenho de ir aos correios, às finanças, à segurança social. Encontro sempre alguém para olhar: as pessoas que fumam à porta do supermercado ou a cigana romena, com uma criança a dormir-lhe no colo, que me estende a mão e o olhar. Enquanto avanço entre a minha casa e o supermercado, posso pensar neste texto que estou agora a escrever ou posso pensar nas compras que preciso. Isto, claro, se não tiver feito uma lista num quadrado de papel. Às vezes, deixo um pedaço de papel preso nesses imãs do frigorífico de Londres ou Ibiza e escrevo lá aquilo de que preciso. Detergente da loiça, por exemplo. É também assim que faço com as ideias para textos como este. Não as afixo no frigorífico, mas anoto-as em papéis que perco e encontro nos lugares mais inesperados da casa, muitas vezes após anos, ou em blocos que começo e que nunca acabo.

Posso estar enganado, mas, conhecendo-me, creio que, se tudo o resto falhar, poderei sempre contar com este caminho entre a minha casa e o supermercado. Bem sei que tudo muda: a casa pode deixar de ser minha, o supermercado pode desaparecer, a casa e o supermercado podem facilmente ser submersos por uma tristeza sem nome. Sei que o mundo pode ainda ser mais terrível do que isso, mas, com optimismo, gosto de pensar que este caminho está garantido. Não é pouco. Ao fazê-lo, carrego vagamente a memória daquelas ocasiões em que a minha mãe tirava um saco de plástico do armário e me pedia que fosse fazer um mandado à mercearia da Ti Ana Dezoito (quadrados de toucinho em cima do balcão de mármore, grãos de sal grosso em cima das folhas de papel pardo), ou quando o meu pai me dava uma garrafa e me mandava ir à do Ti Lourenço (o som e o cheiro do vinho tinto a escorrer do barril para dentro da garrafa, o funil de lata), ou quando a minha mãe me dava a bolsa de renda e me mandava à padaria de Ti Luísa do Peças (a farinha, queres mais bem cozidinho?) Enquanto caminho, eu sou essas memórias. Sou um corpo com pernas, braços e cabeça que é a representação física dessas memórias.

Quando chego ao supermercado, sei o lugar das coisas. A meio da manhã ou da tarde, cruzo-me com homens e mulheres que têm mais de setenta anos e que fazem compras ainda mais insignificantes do que eu: um pacote de leite, duas maçãs, pão. Vejo-me a ser um deles. Não daqui a muitos anos, não sou confiante a ponto de acreditar que passarei dos sessenta, mas já hoje, sou já um deles. Como eles, aproximo-me dos homens que estão a jogar às cartas no jardim, e fico a tentar perceber o jogo por cima dos seus ombros. Como eles, leio todas as notícias do jornal, vejo com pormenor todos os papéis que me são deixados por rapazes brasileiros na caixa do correio. Como eles, escolho bem cada peça de fruta que disponho nesses sacos de plástico fino, que custam a abrir, e, como eles, tomo-lhes o peso com a balança do braço antes de os atar com um nó cego.

É também como eles que encontro as palavras para este texto. Se tudo o resto falhar, como tantas coisas que já falharam efectivamente, posso sempre contar com este texto ou, pelo menos, com textos como este. Não tem de existir sempre a mais alta ambição em cada gesto. Ninguém aguenta viver assim e, para os vivos, viver é muito importante. Eu estou vivo. Respiro quando faço o caminho entre a minha casa e o supermercado, como respiro agora ao escrever esta palavra, e esta, e esta. Estão vivas também as pessoas com mais de setenta anos que cheiram melões no supermercado e que se balançam na aventura de comprar um (será que já estão maduros?) Será, será? Oh, dilema.

Aquilo que digo a mim próprio, digo também aos outros: tenham calma.

Agora, em especial para ti: do lugar de onde estás, tu próprio és o assunto que melhor vês, tu és a pessoa que está mais perto de ti. Por esse motivo, é normal que te pareça que cada detalhe é fundamental, essencial, que não podes viver sem ele. Mas podes. Os outros, esses que te amedrontam, que te telefonam todos os dias, que te escrevem emails e te perguntam: já está?, onde é que está?, porque é que não está? Esses parecem gigantes, têm os olhos muito abertos, mas, sabes, quando adormecem, são meninos indefesos. Como tu, também eles. Como tu, também eles recebem os mesmos telefonemas, os mesmos emails e, como tu, também eles, se encolhem ante gigantes, olhos muitos abertos, que, por sua vez, fazem a mesma coisa com outros e outros e outros, espelhos a reflectirem-se infinitamente. Se eles te perguntarem: já está? Podes responder: não, não está. E tudo continua. Se não tiveres o caminho entre a tua casa e o supermercado, terás outra coisa, qualquer coisa. Se não tiveres um texto como este para escrever, terás outra coisa que desconheço, mas que sei que existe. Por isso, respira, respira, respira.

José Luís Peixoto

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6 Comments:

At 29 de junho de 2009 às 20:08, Anonymous Anónimo said...

O que é que eu tenho a ver com isto ?. Se isto é um blog de publicidade, então é outra coisa.

 
At 29 de junho de 2009 às 21:36, Anonymous Manuel P. said...

Tudo e mais um "par de botas".

 
At 29 de junho de 2009 às 22:14, Anonymous Anónimo said...

vou tentar respirar,respirar...

 
At 30 de junho de 2009 às 22:58, Anonymous Joaquim Lizardo said...

Trata-se de um belo texto de José Luis Peixoto. Felizmente para nós que temos essa pequenina honra de o considerar em parte tambem nosso. Felizmente para ele, que escreve de facto espectacularmente, transmitindo sentimentos que todos nós tambem recordamos de forma similar mas não temos essa faculdade de os descrever como ele tão bem faz. Felizmente para Galveias, Ponte de Sor, Portugal, para o mundo, podermos dizer que é da nossa terra quando nos falam dele.

 
At 1 de julho de 2009 às 14:16, Anonymous Anónimo said...

Mande-se já o gajo para Marte.

 
At 1 de julho de 2009 às 15:56, Anonymous Anónimo said...

Pela suspresa do encontro, Obrigado José Luis por estares aqui, por dares a saber que aqui estás e por te importares connosco que aqui estamos.

 

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