quarta-feira, 8 de julho de 2009

AQUILO QUE FIZ DEPOIS DE LER CERTOS LIVROS FRANCESES

1. Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar

Fui andar de bicicleta. Na minha infância e adolescência eu andava bastante de bicicleta. Em pouco tempo, dava um volta inteira à vila. Não porque tivesse pressa, mas porque tinha energia que precisava de gastar. Quando terminei de ler esse livro, tinha uma bicicleta vermelha, que foi a substituta da mítica bicicleta azul da minha infância. Com a bicicleta azul, fazia cavalinhos, chegava a andar dezenas de metros seguidos com a roda da frente no ar; com a bicicleta vermelha, tirava as mãos do guiador. Sem limite, podia andar o tempo que quisesse sem as mãos no guiador. Caí várias vezes até aprender, ou por me desconcentrar, ou por causa de um buraco ou por causa de qualquer coisa. Cair sem ter as mãos no guiador é desagradável. Tirando isso, sempre gostei muito de andar de bicicleta. Trata-se de uma máquina que respeita o corpo e que se adapta a ele, quase perfeitamente. O acto de pedalar é feito de círculos desenhados no ar por todo o corpo. Existe um movimento de ombros específico para cada maneira de pedalar. Depois, como resultado, o vento no rosto. Mesmo em Janeiro, Inverno mesmo Inverno, é melhor apanhar vento no rosto do que não apanhar. Sentir o toque abstracto do ar, essa matéria, é a certeza inequívoca de que estamos vivos. Se estamos a andar de bicicleta, então, é porque estamos mesmo vivos e temos todos os motivos para sorrir.



2. Uma cerveja no inferno, Rimbaud

Entristeci enquanto olhava através da janela do meu quarto. Lá ao fundo, estava a igreja, o adro, e as casas que rodeavam o adro, mas eu não via esse desenho, eu apenas olhava na sua direcção. Se tocaram os sinos na torre da igreja, eu não os ouvi. Mais perto, por baixo da janela, estava a tapada. Isso é algo que sei agora, teoricamente, porque, na altura, eu não olhava sequer para a tapada, o meu olhar sobrevoava-a e lançava-se numa indefinição, explodia talvez. Eu tinha entristecido subitamente, mas parecia-me que tinha sido devagar. Tudo me parecia lento, as cores dissolviam-se umas nas outras, os sons entornavam-se uns para dentro dos outros. Não tinha nenhum motivo para a tristeza. Com meio raciocínio chegaria a essa conclusão, mas evitava-o porque não queria perder o sabor daquela tristeza branda, feita de sons e imagens que existiam num lugar muito distante, onde eu nunca tinha estado, mas que recordava, como a memória de todos os lugares que me esperavam. Alguns onde, agora, já fui, e todos aqueles onde ainda irei.



3. Viagem ao fundo da noite, Celine

Fui comer pão com manteiga. Não era exactamente manteiga, era margarina vegetal. Embora mais fiel à realidade, acho que ficava menos bem ter escrito “fui comer pão com margarina vegetal”. Normalmente, na minha casa, chamávamos-lhe, ainda chamamos, o nome da marca. Assim, quando esse acto teve lugar, eu teria dito “vou comer pão com planta”. O pão estava guardado na caixa do pão, dentro do armário, na porta por baixo da televisão, sobre uma prateleira forrada com papel de embrulho em tons de cor-de-laranja, com um padrão de quadrados arredondados, algo aproximado de uma estética dos anos setenta. Por preguiça, nesses anos, eu raramente (nunca) cortava fatias de pão com a faca. Abria a porta do armário, abria a caixa do pão, segurava o pão e, com os dedos, arrancava um pedaço que, posteriormente, barrava com margarina vegetal, planta. Eu tirava sempre um pouco de côdea, gostava e gosto muito de côdea, mas o pão ficava com formas inusitadas que desagradavam à minha mãe. Não sei bem qual a razão etimológica, mas nessa altura, eu não dizia “um pedaço de pão”, não dizia sequer “um naco de pão”, dizia “um fanaco de pão”. Dessa forma, se tivesse encontrado a minha irmã no quintal, acho que era Primavera, acho que era de tarde, teria dito “vou comer um fanaco de pão com planta”. E foi mesmo isso que fiz. Já não me recordo do momento exacto em que mastiguei esse pão específico, mas recordo-me de outras vezes e sei, mesmo bem, que sempre foi um prazer imenso estar cheio de (esganado com) fome e comer um pedaço (fanaco) de pão cheio de margarina vegetal (planta) mal espalhada.



4. A religiosa, Diderot

Fui ver se os rapazes que costumavam jogar à bola em frente à oficina do meu pai já tinham chegado. Fui na minha bicicleta azul. Nessa altura, a corrente saltava com muita frequência e eu sujava as mãos todas de óleo para voltar a colocá-la. Cada vez que acontecia, eu pensava que tinha de levá-la a alguém que a arranjasse definitivamente, a apertasse. Quando terminava de colocá-la, esquecia-me desse propósito e pensava que, dessa vez iria ficar mais tempo sem saltar e, depois, quase milagre, iria arranjar-se sozinha. Os quase-milagres custam muito a acontecer. Quando cheguei à entrada da oficina do meu pai, os rapazes ainda não tinham chegado e a corrente da bicicleta saltou quando ia para fazer um cavalinho. Enquanto a estava a pô-la de novo, chegou o primeiro e o segundo rapaz. Limpei às mãos à parede. A marca das minhas mãos pequenas, a óleo, esticadas na parede, ficou lá durante vários anos, vários invernos choveram-lhe toda a sua força. Depois, ainda limpei as mãos nas ervas. Continuaram pretas, mas deixaram de estar pegajosas. Éramos então, três rapazes, sem bola, à espera de jogar à bola. Mas não fazia mal porque tínhamos muitos assuntos acerca dos quais podíamos conversar.



5. O estrangeiro, Camus

Não vou dizer aquilo que fiz. Tenho vergonha. Não deveria ter, mas tenho. Eu tinha treze anos e estava sozinho no meu quarto. Toda a gente já fez aquilo que eu fiz naquele momento. Se alguém se levantar a dizer que não o fez, tenho pena dessa pessoa. Alguém que sabe muito e que já viveu muito contava-me há pouco tempo que a maioria das coisas que nos acontecem não são escolha nossa. É preciso uma vida inteira, mais de sessenta anos pelo menos, para se fazer esta afirmação com propriedade. Pedindo emprestada a experiência da voz na qual escutei esta frase, acrescento que, se essa falta de escolha existe, então tem de estar presente nos momentos aparentemente pequenos, uma vez que são eles que, sucessivos e constantes, formam aquilo a que, no cume da montanha, chamamos “a vida”. Por isso, aquilo que fiz, treze anos, meu quarto, não foi exactamente uma escolha minha, foi uma circunstância. Feitas as contas, tudo é circunstância. Até poderia contar aquilo que fiz depois daquilo que fiz imediatamente após concluir a leitura de O Estrangeiro, de Camus, mas acredito que isso já não vos interesse tanto. Parece-me que gostariam de saber o que fiz logo depois de ler O Estrangeiro, de Camus, afinal esse é o título e o pressuposto deste texto, mas isso não vou dizer.


José Luís Peixoto

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9 Comments:

At 9 de julho de 2009 às 13:41, Anonymous Anónimo said...

Grande camarada José Luis Peixoto, Grande Candidato à Presidência da Assembleia Municipal de Ponte de Sor pelo Bloco de Esquerda.
Voto nele.
José Silva

 
At 9 de julho de 2009 às 21:45, Anonymous Anónimo said...

O bloco vai estar em grande!
Estou convencido que elegemos um vereador.
È tempo de apresentar o cabeca de lista á camara, e procurar encontrar a restante equipa.
Para a Assembleia está encontrado o Zé Luis, é o mais mediático e é filho da terra.

 
At 10 de julho de 2009 às 13:29, Anonymous Anónimo said...

O Zé Luis tem o meu apoio
José Silva

 
At 10 de julho de 2009 às 16:19, Anonymous Anónimo said...

força BE!!!

 
At 10 de julho de 2009 às 20:18, Anonymous Anónimo said...

Os candidatos já apresentados (fora o do costume)representam uma progressão no que à sua qualificação se refere, pelo que estão de parabéns.

Mas,
2009-1974 = 0
mulheres de relevo na Presidência quer da Câmara Municipal, da Assembleia, nas Freguesias de Ponte de Sor

È tempo de a política local ser tratada com a elevação e o respeito que ela merece, em espaços de tempo e lugar dos quais as mulheres não sejam socialmente excluídas, nem estigmatizadas, para que a sua participação democrática seja efectiva e não de fachada.

A Ponte de Sor é feminina e é através dela que se chega a um futuro mais promissor e igualitário .

 
At 10 de julho de 2009 às 22:05, Anonymous Anónimo said...

Deixa-te disso pois as mulheres, como sexo mais fraco, não servem para governar. Se tens dúvidas vê lá as asneiras que a avózinha do psd tem cometido. Ontem disse uma coisa, hoje diz que não dissa, e amanhã diz que disse mas não perceberam o que ela disse.

 
At 11 de julho de 2009 às 20:00, Anonymous Anónimo said...

Quem dera que o PM fosse tão consciencioso como a que o comentador chamou avozinha. Quem dera que no país houvesse mais avós.

 
At 12 de julho de 2009 às 11:49, Anonymous Anónimo said...

Amigo geriátrico, quando lhe derem saida do lar da terceira idade, apareça para a malta curtir uma noitada.

 
At 12 de julho de 2009 às 20:13, Anonymous Anónimo said...

Goza, goza... mais tarde dar-me -ás razão. Ainda pensas que juventude é sinónimo de sabedoria! Quão imaturo és, meu filho...

 

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