UM EXERCÍCIO DE OBEDIÊNCIAS E DE SERVIDÕES
De todas as vezes que José Sócrates cumprimenta um dos senhores da Europa, creio que se julga entre pares. Com perdão da palavra, José Sócrates labora num erro. Ele é um entre muitos outros; porém, estes, acaso com mais virtudes, e certamente mais apetrechados politica e culturalmente.
Em tempos, numa desastrada entrevista ao severo e pesado Expresso, confessou ser um animal feroz. A ferocidade demonstrada inclina-se para um dos lados: o dos desfavorecidos, dos desprotegidos, dos marginalizados. Parafraseio o poeta: ele deixa comer tudo e não nos deixa comer nada.
O Tratado de Lisboa, que ninguém assim designa a não ser o nacionalismo pacóvio de uma Imprensa patusca, chapou, historicamente, uma frase chula: É porreiro, pá!, e um abraço místico entre Barroso e Sócrates, muito contentes com as audácias um do outro. É curto e é tolo. O teor do documento passou ao lado de milhões de pessoas. Poucos sabem do que se trata. Os habituais turiferários do poder socialista e os costumeiros direitinhas fizeram coro nas hossanas. É uma vergonha moral e intelectual que ninguém se desse ao trabalho de desconstruir, para esclarecimento dos íncolas, as malfeitorias que o pacto dissimula. Disseram-me que Miguel Portas e Ilda Figueiredo tentaram desmontar os incestuosos parágrafos, nos quais se limita a já módica capacidade de acção da arraia-miúda. Não dei por isso. Porém, li, com irritação, editorialistas que se tomam como filósofos e escrevem como eguariços; e colunistas de uma nota só, complicados, artificiais e ignorantes.
Sei que o Tratado de Lisboa é um exercício de obediências múltiplas e de servidões várias. Esta estranha fórmula de enganar o povoléu e de converter a dependência em glória começa a constituir tradição nas desafortunadas aventuras da política portuguesa. Nada, no documento, preserva o que resta da Europa Social, para defesa do que a União foi criada – ou, pelo menos, o que seria o desejo dos seus primitivos fundadores. Demonstra, o que se conhece do texto, uma clara ou dissimulada sedimentação jurídica do capitalismo mais ortodoxo; seja: selvaticamente neoliberal. Sei muito bem que esta definição fere os ouvidos mais sensíveis de deliciosos comentadores do óbvio. Também sei que ela pode ser entendida como anacrónica demagogia. Os cálculos são-me indiferentes. Mas a glosa dos paladinos da santidade do documento deixou de ser um género literário, mais ou menos inofensivo, para se transformar num instrumento ideológico extremamente agressivo. Contra quem? Contra o mundo do trabalho.
O Tratado de Lisboa não é uma fraude porque existe. E se assim ele existe é porque foi albardado à vontade dos senhores da Europa, da qual, rigorosamente, nós fazemos parte mínima. Fala-se do Império, consignando-se, nesta fórmula, a hegemonia norte-americana. Oculta-se a edificação deste novo Império europeu, que recorre a todos os capítulos da Direita (sobretudo a Direita social-democrata e socialista) para cimentar o seu poder. A ideia não é nova. E a história da Europa está juncada deste rosmaninho imperial. Agora, a anunciação põe em jogo as ambiguidades ideológicas da época, e sussurra que esta União pretende acautelar-se ou, acaso, defender-se dos excessos dos Estados Unidos.
Disfarça-se a evidência de que a história da Europa é uma história de guerras e de incomensuráveis interesses económicos. Basta ler o velho Arnold Toynbee, cujo Étude de l’Histoire continua a ser uma referência magistral, ou passar um olhar diletante por O Nascimento da Europa, Edições Cosmos, para se compreender o que está em causa. A União Europeia não é a Meca do shopping ao serviço das populações. É um dos processos utilizados pelo capitalismo, renovado com a queda do Muro de Berlim, para tripudiar sobre o que, no século XX, custou o preço do sangue, da tortura, da fome, da miséria e da morte de milhares e milhares, até milhões, de trabalhadores. Para quem presuma que estas conclusões pertencem ao breviário marxista recomendo, vivamente, a leitura de Economia e Sociedade-Fundamentos da Sociologia Compreensiva, de Max Weber, conhecido pelo anti-Marx.
É porreiro, pá! ficará como uma espécie de senha do absurdo. Aqueles dois selaram, num fértil abraço, os equívocos de um texto cuja natureza e significado nos foi escamoteado. A gravidade extrema do caso consiste nisso. Nada sabemos do complexo entrelaçamento das forças sociais, políticas e ideológicas, naquilo que se pretende definir como Europa e realizar como Europa. O embuste foi mobilado com esta inconsequência: o que se concretiza não é, inequivocamente melhor, do que o não-concretizado.
Estamos, lentamente, a perder tudo. O cerco e o esmagamento funcionam como tenaz, em nome não se sabe de quê, mas intensamente produzidos por um dispositivo insidioso que propõe outros amanhãs que cantam. Os movimentos que animaram Portugal, durante o fascismo e até à década de 80, possuíam um vigor que permitia todos os sonhos de renascimento. O 25 de Abril decorria dessa relação e favorecia uma outra e quase desmesurada dimensão da esperança. Porém, a prosperidade da utopia não dispunha da força dos seus antagonistas. E chegámos a isto. O mundo dos enganos, o marquetingue e uma Imprensa apenas canora, distanciada e turva facultaram todas as oportunidades de triunfo a um novo conceito, marcado pela ausência de valores humanistas e de padrões solidários.
Qualquer pessoa de boa formação não tropeça neste êxtase que fragmenta a sociedade e traça, dramaticamente, uma fronteira entre os portugueses, provocando o ódio, o ressentimento e o rancor. Como há quarenta anos.
B.B.
Em tempos, numa desastrada entrevista ao severo e pesado Expresso, confessou ser um animal feroz. A ferocidade demonstrada inclina-se para um dos lados: o dos desfavorecidos, dos desprotegidos, dos marginalizados. Parafraseio o poeta: ele deixa comer tudo e não nos deixa comer nada.
O Tratado de Lisboa, que ninguém assim designa a não ser o nacionalismo pacóvio de uma Imprensa patusca, chapou, historicamente, uma frase chula: É porreiro, pá!, e um abraço místico entre Barroso e Sócrates, muito contentes com as audácias um do outro. É curto e é tolo. O teor do documento passou ao lado de milhões de pessoas. Poucos sabem do que se trata. Os habituais turiferários do poder socialista e os costumeiros direitinhas fizeram coro nas hossanas. É uma vergonha moral e intelectual que ninguém se desse ao trabalho de desconstruir, para esclarecimento dos íncolas, as malfeitorias que o pacto dissimula. Disseram-me que Miguel Portas e Ilda Figueiredo tentaram desmontar os incestuosos parágrafos, nos quais se limita a já módica capacidade de acção da arraia-miúda. Não dei por isso. Porém, li, com irritação, editorialistas que se tomam como filósofos e escrevem como eguariços; e colunistas de uma nota só, complicados, artificiais e ignorantes.
Sei que o Tratado de Lisboa é um exercício de obediências múltiplas e de servidões várias. Esta estranha fórmula de enganar o povoléu e de converter a dependência em glória começa a constituir tradição nas desafortunadas aventuras da política portuguesa. Nada, no documento, preserva o que resta da Europa Social, para defesa do que a União foi criada – ou, pelo menos, o que seria o desejo dos seus primitivos fundadores. Demonstra, o que se conhece do texto, uma clara ou dissimulada sedimentação jurídica do capitalismo mais ortodoxo; seja: selvaticamente neoliberal. Sei muito bem que esta definição fere os ouvidos mais sensíveis de deliciosos comentadores do óbvio. Também sei que ela pode ser entendida como anacrónica demagogia. Os cálculos são-me indiferentes. Mas a glosa dos paladinos da santidade do documento deixou de ser um género literário, mais ou menos inofensivo, para se transformar num instrumento ideológico extremamente agressivo. Contra quem? Contra o mundo do trabalho.
O Tratado de Lisboa não é uma fraude porque existe. E se assim ele existe é porque foi albardado à vontade dos senhores da Europa, da qual, rigorosamente, nós fazemos parte mínima. Fala-se do Império, consignando-se, nesta fórmula, a hegemonia norte-americana. Oculta-se a edificação deste novo Império europeu, que recorre a todos os capítulos da Direita (sobretudo a Direita social-democrata e socialista) para cimentar o seu poder. A ideia não é nova. E a história da Europa está juncada deste rosmaninho imperial. Agora, a anunciação põe em jogo as ambiguidades ideológicas da época, e sussurra que esta União pretende acautelar-se ou, acaso, defender-se dos excessos dos Estados Unidos.
Disfarça-se a evidência de que a história da Europa é uma história de guerras e de incomensuráveis interesses económicos. Basta ler o velho Arnold Toynbee, cujo Étude de l’Histoire continua a ser uma referência magistral, ou passar um olhar diletante por O Nascimento da Europa, Edições Cosmos, para se compreender o que está em causa. A União Europeia não é a Meca do shopping ao serviço das populações. É um dos processos utilizados pelo capitalismo, renovado com a queda do Muro de Berlim, para tripudiar sobre o que, no século XX, custou o preço do sangue, da tortura, da fome, da miséria e da morte de milhares e milhares, até milhões, de trabalhadores. Para quem presuma que estas conclusões pertencem ao breviário marxista recomendo, vivamente, a leitura de Economia e Sociedade-Fundamentos da Sociologia Compreensiva, de Max Weber, conhecido pelo anti-Marx.
É porreiro, pá! ficará como uma espécie de senha do absurdo. Aqueles dois selaram, num fértil abraço, os equívocos de um texto cuja natureza e significado nos foi escamoteado. A gravidade extrema do caso consiste nisso. Nada sabemos do complexo entrelaçamento das forças sociais, políticas e ideológicas, naquilo que se pretende definir como Europa e realizar como Europa. O embuste foi mobilado com esta inconsequência: o que se concretiza não é, inequivocamente melhor, do que o não-concretizado.
Estamos, lentamente, a perder tudo. O cerco e o esmagamento funcionam como tenaz, em nome não se sabe de quê, mas intensamente produzidos por um dispositivo insidioso que propõe outros amanhãs que cantam. Os movimentos que animaram Portugal, durante o fascismo e até à década de 80, possuíam um vigor que permitia todos os sonhos de renascimento. O 25 de Abril decorria dessa relação e favorecia uma outra e quase desmesurada dimensão da esperança. Porém, a prosperidade da utopia não dispunha da força dos seus antagonistas. E chegámos a isto. O mundo dos enganos, o marquetingue e uma Imprensa apenas canora, distanciada e turva facultaram todas as oportunidades de triunfo a um novo conceito, marcado pela ausência de valores humanistas e de padrões solidários.
Qualquer pessoa de boa formação não tropeça neste êxtase que fragmenta a sociedade e traça, dramaticamente, uma fronteira entre os portugueses, provocando o ódio, o ressentimento e o rancor. Como há quarenta anos.
B.B.
Etiquetas: Constituição Europeia, José Sócrates, Partido Socialista, Tratado de Lisboa, Tratado Europeu
1 Comments:
Era “porreiro, pá!”
Portugal vai concluir 2007 com um défice orçamental de 3%, deixando assim de violar o Pacto de Estabilidade e Crescimento. Esta consolidação das contas públicas merece, naturalmente, ser aplaudida, tanto mais que foi realizada num curto espaço de tempo (em 2005, o défice era ainda de 6,1%).
Acontece que tão notável recuperação tem um lado sombrio que, a despeito das virtudes da contenção orçamental, não pode ser escamoteado. Até porque essa face menos radiosa do combate ao défice colide, amiudadas vezes, com um princípio essencial do sistema democrático: a equidade no relacionamento do Estado com os cidadãos e empresas.
Tolhido pelos compromissos do défice e não logrando emagrecer substancialmente o sector público, o Governo tem cometido alguns atropelos aos direitos dos cidadãos e empresas, designadamente em matéria fiscal. Quando se trata de questões tributárias, o Estado parece um arruaceiro de aldeia: bate primeiro e pergunta depois. Ou seja, factura primeiro e só depois possibilita o legítimo esclarecimento aos contribuintes que não se deixam intimidar pela pesporrência da administração fiscal e recorrem aos tribunais. E aqui o Estado fica protegido pela lentidão da justiça: os processos arrastam-se anos a fio, protelando decisões judiciais que, na sua esmagadora maioria, acabam por ser favoráveis aos contribuintes. Recorde-se, a propósito, que o Governo tentou atribuir à administração fiscal o poder de derrogar o sigilo bancário quando um contribuinte reclamasse ou impugnasse uma decisão do Fisco – intenção entretanto chumbada pelo Tribunal Constitucional, mas que visava, claramente, dissuadir a litigância por motivos tributários.
Digno de ponderação, nesta matéria, é a banalização da presunção fiscal, que tem dado azo a toda a sorte de injustiças. O Estado teima em arrecadar e antecipar impostos com base na presunção de rendimentos que ainda não foram realizados, como é o caso dos Pagamentos por Conta ou dos Pagamentos Especiais por Conta, sem esquecer o autêntico quebra-cabeças que são os impostos diferidos. Em todos estes casos, não só não há uma tributação efectiva como se chega a verificar a inversão do ónus da prova. Ou seja, o acusador (administração fiscal) não necessita de provar a existência de rendimentos para tributar, cabendo, por conseguinte, ao acusado (contribuinte) demonstrar a sua inocência.
Mas, ainda recentemente, ficámos a conhecer novos sintomas da obsessão fiscal que o Governo tem vindo a revelar. Segundo notícia do “Público”, a Direcção-Geral dos Impostos (DGCI) pretende aplicar, desde já, procedimentos para a execução de penhoras de imóveis sobre contribuintes faltosos que só são válidos se a proposta de Orçamento do Estado para 2008 (OE2008) for aprovada. Além disso, e de acordo com a mesma proposta orçamental, a DGCI vai passar a poder penhorar os créditos futuros que os contribuintes com dívidas ao fisco venham a ter sobre terceiros. Na prática, contribuintes que nada devem ao fisco podem vir a ter de responder por dívidas fiscais dos seus fornecedores de bens ou serviços, o que é claramente um abuso? de confiança!
A propósito de abuso de confiança, o crime fiscal com este qualificativo remete para a existência de uma determinada prestação tributária que foi efectivamente recebida e que o contribuinte está legalmente obrigado a entregar ao Estado mas que, ao invés disso, faz entrar no seu património ou passa a dispor dela como se fosse sua. Ficariam, portanto, excluídas do âmbito desta norma incriminadora situações em que o contribuinte não chega sequer a receber o imposto. Mas note-se que, não obstante seja este o entendimento quase unânime da jurisprudência e da doutrina, é normal o Fisco considerar que há prática do crime de abuso de confiança fiscal, por exemplo no caso do IVA, mesmo não ocorrendo efectivo recebimento anterior ao momento do cumprimento do tributo.
Apetece perguntar, afinal quem é que comete o crime de abuso de confiança ou quem é que está a abusar de quem? Por exemplo, seria interessante verificar, nas contas do Estado, quanto contribui para a receita o IVA entregue pelos contribuintes relativo a facturas em dívida pelos serviços da Administração Pública que não foram pagas no ano respectivo para não aumentar a despesa.
O princípio é simples: impondo um limite temporal para os pagamentos, a partir de Janeiro do próximo ano, evita-se a entrada desse dinheiro na coluna das despesas do respectivo exercício anual. Trata-se, pois, de um mero expediente para maquilhar as contas públicas, mas que mostra bem como o Estado, ao contrário do que exige aos cidadãos, não honra as suas obrigações financeiras. Ao dar grande publicidade à lista dos contribuintes faltosos, seria ético e moralmente exigível que o Estado estivesse disponível para publicar uma lista dos cidadãos e empresas a quem deve dinheiro. De resto, segundo um estudo da Intrum Justitiae, o prazo médio de pagamentos da Administração Pública portuguesa é de 152,5 dias, face à média europeia de 68,9 dias. Ora, ao retardar os pagamentos, o Estado gera um efeito “bola de neve” sobre toda a economia, na medida em que os credores da Administração Pública ficam, por falta de liquidez, impedidos de cumprir as suas obrigações com os seus credores. No OE2008, o Governo inscreveu um programa de redução dos prazos de pagamento. Resta-nos esperar para ver os resultados?
Em suma, cada vez mais refém das receitas fiscais para controlar o défice, o Governo lança mão de expedientes de duvidosa legitimidade. A agenda governamental privilegia os objectivos do Ministério das Finanças em prejuízo dos objectivos do Ministério da Economia, como é patente na proposta de OE2008, onde a preocupação com as contas públicas se sobrepõe inequivocamente ao desejado reforço da competitividade. Era “porreiro, pá”, que se olhasse mais para a economia real e não tão obsessivamente para as questões orçamentais.
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