segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

2008: ANO DO TERROR

Bem-vindo ao ano de 2008 e a um país onde o terror passou a ser lei e o Estado democrático e republicano foi substituído por um Estado policial onde a totalidade dos cidadãos assume a condição de vigilantes da lei e da virtude e a totalidade das forças policiais estão mobilizadas para acorrer a todo o lado e reprimir na hora os prevaricadores dos bons costumes. Havia a Arábia Saudita, o Irão e os Estados Unidos. Agora há mais um país oficialmente fundamentalista: Portugal.

Com a entrada em vigor da famigerada Lei 37/07 - a lei antitabagismo -, passa a vigorar entre nós uma lei do terror e o país reencontra-se com a sua velha vocação de proibicionismo, delação e repressão dos direitos individuais. Tudo para perseguir um vício que, note-se, é, todavia, legal e fomentado pelo próprio Estado. O Estado financia, com dinheiros europeus, o cultivo de tabaco; o Estado produz e comercializa cigarros, em regime de quase monopólio, através da empresa pública Tabaqueira; o Estado taxa, de seguida, a venda de cigarros (que ele próprio promove), constituindo essa uma das suas principais fontes de receita. E, no fim do processo, o mesmo Estado, movido pela nobre intenção de defender a saúde pública, decreta que quem fuma deve ser perseguido, denunciado e multado em todo o lado. Qualquer dealer de drogas duras tem mais credibilidade moral do que o Estado português. Nem os dealers de heroína perseguem os clientes nem o Governo da Arábia Saudita promove a venda de álcool aos fiéis a quem proíbe beber.

Tardámos, mas, nestas coisas do politicamente correcto, quando avançamos é a matar. Sobretudo se tudo o que se exige aos governos é que proíbam e multem. Nenhum país do mundo (excepção feita aos Estados Unidos, em alguns Estados) foi tão longe em matéria de perseguição aos fumadores - mas também se compreende, visto que eles são os maiores produtores mundiais de tabaco e, se o proibissem, levariam à ruína e ao desemprego milhões de agricultores e trabalhadores das tabaqueiras. Neste campo, quanto maior é a culpa maior é a hipocrisia.

Ao abrigo da Lei 37/07, nenhum trabalhador, mesmo que a sós no seu gabinete de trabalho e sem contacto com outros, vai poder fumar; o engenheiro José Sócrates vai ter de ir fumar para os jardins de São Bento, porque lá dentro está num edifício de um órgão de soberania; um velhinho, internado para morrer num lar e cujo derradeiro prazer seja o cigarro, não o vai poder fumar porque chamam a polícia; um preso pode pedir uma seringa nova numa prisão para injectar droga, mas não vai poder fumar, excepto no recreio ao ar livre; em locais como a Feira da Golegã, a Fatacil, a Ovibeja ou a Feira da Ladra, mesmo ao ar livre, não se vai poder fumar, porque são recintos de feira; nas praças de touros não se vai poder fumar, porque são recintos de espectáculos; o faroleiro do Bugio ou o guarda-linha da CP, mesmo na solidão absoluta das suas moradas, não vão poder fumar, porque estão em instalações do Estado; pela mesma razão, nem sequer o embaixador vai poder fumar, nas várias embaixadas de Portugal espalhadas pelo Mundo; não se vai poder fumar nos quartéis, nos navios da Armada, nas estações e gares de comboios e barcos, nos aeroportos, em todos os ministérios e repartições públicas, nos hospitais e centros de saúde, nas Pousadas de Portugal e em todos os hotéis que o decidam, em todos os espectáculos, excepto nas zonas ao ar livre dos estádios de futebol (à excepção do camarote presidencial do Benfica e do FC Porto). Mas, resumindo: como não se pode fumar em nenhum local de trabalho nem de atendimento ao público, as quarenta e tal proibições da Lei 37/07 tornam-se inúteis e, com um legislador menos incapaz, ter-se-iam reduzido a uma simples formulação: é proibido fumar em todo o lado, excepto ao ar livre e dentro do transporte individual ou da casa de cada um. Ressalvando, todavia, que, mesmo ao ar livre, há casos de proibição na lei e que, mesmo em casa de cada um, nada exclui que, tal como previsto na lei, por determinação da gerência do condomínio, se possa proibir o fumo em todo o prédio.

Só alguém com sérios problemas mentais poderia ter feito esta lei. E só uma Assembleia de deputados incompetentes e sem coragem nem vontade própria a poderia ter aprovado. É uma lei à medida de um país de polícias e de eunucos. Chamada a resolver uma situação em que se tratava de proteger os não-fumadores do fumo passivo, obrigando à criação de áreas específicas para fumadores, o legislador não esteve com meias medidas e quis lá saber se os fumadores tinham ou não alguns direitos também. A regra foi proibir quase sempre e em todo o lado e, quando misericordiosamente entreabriu algumas portas (como no caso dos bares e restaurantes), determinou tamanhas exigências técnicas que a tradicional lei do menor esforço e a falta de profissionalismo em vigor no sector se encarregaram de chegar à solução mais fácil: que vão fumar para a rua e é enquanto podem.

Já andam para aí alguns zelotas preocupados em que a lei possa não ser cumprida em todo o seu rigor. E alguns descendentes mentais dos antigos bufos da PIDE já se encarregaram de telefonar à polícia a denunciar fumadores. E a polícia lá acorreu, pressurosa, para reprimir à nascença a difusão deste odioso crime - que é o único não previsto no Código Penal e fomentado pelo Estado.

E lá, do seu pedestal onde figura como Torquemada ou Elliot Ness da Reboleira, de crachá pendente do cinto das calças e ar ameaçador (vide revista Tabu do último sábado), já afia o dente António Nunes, o presidente dessa nova polícia chamada ASAE, cujos agentes se apresentam de camuflado negro e em estilo de brigada antiterrorista para inspeccionar restaurantes e cafés do país e agora mobilizada para o combate a este novo crime.

A lei, aliás, parece feita de encomenda para o senhor da ASAE. O homem que promete acabar de vez com as bolas de Berlim nas praias, os pastéis de bacalhau nas tascas e os doces de fabrico caseiro nos cafés, que jura guerra às colheres de pau nas cozinhas e que promove um mundo totalmente plastificado - colheres, copos, luvas, embalagens para tudo - e que suspira filosoficamente que a dura lex, sed lex o vai obrigar a fechar metade dos restaurantes do país, não podia ser mais adequado a esta nobre tarefa de perseguir os fumadores em todas as feiras, chafaricas e recantos do país profundo. (Na Irlanda - esse país que ainda há poucos anos perseguia os 'infiéis' não-católicos como emissários do demónio -, a perseguição aos fumadores desencadeada pela ASAE local levou já ao fecho de 11 mil pubs de província, de acordo com o lema acabamos com os fumadores nem que tenhamos de acabar com a vida no interior!) Um bom exemplo para Portugal.

Sosseguem, pois, os ayatollahs de serviço por aqui: temos a ASAE e o seu exército de camisas negras com as narinas devidamente treinadas para cheirar qualquer resquício de fumo a léguas de distância. E temos os eternos bufos disponíveis para denunciar nem que seja o velhote que há anos se senta na mesma mesa da tasca do bairro para jogar dominó com os amigos e acender um cigarro para queimar o frio e a tristeza. A tristeza por viver num país onde se respeita tão pouco a liberdade dos outros.


Miguel Sousa Tavares

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2 Comments:

At 8 de janeiro de 2008 às 18:55, Anonymous Anónimo said...

eu posso falar pois não sou fumador, já fui, como já foram milhares de não fumadores actualmente.
isto e uma vergonha, o senhor presidente da asae e apanhado a fumar no casino, então vai-se dar uma nova interpretação a dita lei.
Só em Portugal

 
At 9 de janeiro de 2008 às 00:06, Anonymous Anónimo said...

A lei do tabaco entrou em vigor à portuguesa: sem fumo mas com muita fumaça, já se estudam excepções à regra para cobrir possíveis infracções e interesses particulares.

O inspector-geral da ASAE, fotografado pelo Diário de Notícias a fumar no restaurante de um casino 2 horas e meia após a entrada em vigor da lei, teve oportunidade de manifestar o seu entendimento sobre o âmbito do diploma. Se se tratasse de um cidadão comum, apanhado em flagrante por fiscais encapuçados da ASAE, explicava-se no chilindró. Assim explicou-se nos jornais para considerar que a lei não é explícita e que levanta um conflito de interesses com os casinos.

Estamos sem dúvida em Portugal. Fazem-se leis fundamentalistas mas começa-se desde o primeiro minuto a estudar a maneira de abrir excepções. O conflito de interesses entre a lei do tabaco e os casinos não é diferente do conflito com os interesses de qualquer outro tipo de estabelecimento e outra espécie de clientes. O que acontece é que os casinos têm uma força que a tasca da esquina não tem e o frequentador da baiuca não é o inspector-geral da ASAE.

Pelo meio desta polémica, a agência Lusa citou um parecer do Direcção-Geral de Saúde, de Novembro passado, segundo o qual os casinos, “sendo locais fechados, não podem deixar de se incluir no âmbito da aplicação da lei”. Mas dada a condição do primeiro de todos os apanhados pela lei, o parecer foi para a gaveta e um Grupo Técnico Consultivo vai debruçar-se de novo sobre a matéria. O Grupo debruça-se e, o mais certo, é a legalidade cair num alçapão. Está escrito que os cidadãos têm que ser considerados iguais perante a lei. Mas não está escrito em parte alguma que as leis tenham que ser iguais perante os cidadãos.

 

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