POBRE TERRA A NOSSA... ENTREGUE A TAL GENTE ... [parte II]
Um velho amigo meu, que terçou armas pela liberdade e pagou nas masmorras do Salazar o orgulho de recusar ser um português normalizado, dizia-me, há dias: "Tenho vergonha de desejar Boas-Festas às pessoas, com as dificuldades que elas sentem". Estou d’acordo. Mas dou Boas-Festas.
O que mais estragos causa em nós acontece quando acedemos a desmantelar os andaimes das nossas esperanças. Claro que quase tudo nos incita à indiferença. E pertenço a uma geração que recusou a celebração de alegrias fraudulentas, sem nada ambicionar em troca a não ser viver na liberdade que só a solidariedade permite. Continuo, porém, a acreditar em que as coisas estão ao nosso alcance. O homem, quando quer, consegue tudo quanto quer. A questão está no "querer".
O negro espectro que plana sobre as nossas cabeças mais do que ameaçar uma parte de nós, constitui um perigo para todos. As relações entre os portugueses deterioraram-se com as injustiças, as mentiras, as falsas (e, por isso, hediondas) promessas.
A incompreensão sobreleva a compreensão, e o que ocorre em Portugal e em boa parte do mundo parece dar razão a Walter Benjamin, para o qual a civilização alimenta-se da barbárie. A barbárie é um produto directo da ignorância, da estupidez, da intolerância, do obscurantismo religioso: nenhuma confissão está inocente.
E, também, dos psiquismos que levam muitas vezes os povos a não estar de bem com a liberdade.
Vivemos numa dessas épocas tenebrosas. O País não está coeso, nem espiritual, nem social nem politicamente. A ética cívica e o sentido da solidariedade, bandeiras republicanas, decompuseram-se de tal modo que, perante as negações, aparentemente sem remédio, a prefiguração do salvador da pátria reemerge do pior dos nossos abismos ancestrais.
Há algo de infame e de obsceno nesta baça aspiração. Apercebemo-nos, dramaticamente, que as "irreversíveis conquistas de Abril" não estão, apenas, intimidadas: estão condenadas, acaso não consigamos descodificar os inquietantes sinais que nos são fornecidos. A experiência portuguesa dos últimos vinte anos compele ao pessimismo.
Os crimes (porque de crimes se trata) cometidos em nome da "competitividade", do "desenvolvimento sustentado", da "modernidade", espezinharam quase todas as formas de benevolência e de compaixão. Católicos de genuflexão, rosário e reza, trepados aos diversos Governos, do PS e do PSD, tripudiaram sobre os preceitos mais rudimentares das suas crenças, e alimentaram a ganância, a busca do lucro, o crescendo da precarização do trabalho e do desemprego.
Parece que habitamos "na morada do castigo" (para de novo citar o grande poeta e meu saudoso amigo Ruy Belo), desprezando, por inércia, os obstáculos a ultrapassar. O desalento acentua-se na deriva das nossas colectivas finalidades. Um sinistro avejão paira, medonho, no céu do nosso destino, para de ele nos excluir, e transformar em virtude o testamento do autoritarismo mais reaccionário.
Não há metáfora que resista a este repuxar da impostura através do silêncio. Nem poesia que transfira as evidências das rupturas para os terrenos das convicções. O mito sebástico do salvador é outra forma de falharmos a História. Periodicamente, rilhamos os ossos de mártires, confessores e protectores: a cultura de pedir ao adventício o que a nossa preguiça mental recusa diligenciar.
Dir-se-á: mas os restaurantes estão cheios, as viagens são cada vez mais e para longes sítios, carros há-os por todo o lado. É verdade que há gente feliz. É verdade que há gente cheia de lágrimas. Esta última é a maior de todas as maiorias. O sinistro avejão que paira, medonho, representa um sistema de valores contrário às aspirações populares, e elimina, completamente, a possibilidade de uma sociedade mais justa, mais fraterna, mais comprometida com a própria noção de comunidade e de partilha. Não há sistema sem imposições.
Chegámos a um patamar onde a necessidade de mudança é um imperativo. No entanto, a "mudança" resulta de decisões governativas, nunca de iniciativas presidenciais, a não ser que, subrepticiamente, se pretenda alterações profundas ao regime. Seja como for, a situação tornou-se dilemática. E não está posta de parte a eventualidade de um golpe de Estado constitucional.
Dilectos: aconteça o que acontecer, cá estamos para o que der e vier. Independentemente da consciência das incertezas, Boas-Festas, um Bom Ano, e - por favor! - nunca deixem de lutar para ser felizes!
Baptista Bastos